Alfred, o roteiro é teu!

- Clak, ele pediu para aguardar um minuto. Já vai chamá-lo. Aceita um café?

-Sim, por favor. Puro sem açúcar.

Apesar da situação que iria enfrentar, sentia-se calmo.

Afinal quanto dinheiro, aquele porra não tinha levado, graças aos roteiros que havia escrito. Era certo, que eram para aquelas merdas de vídeos pornô de quinta categoria que produzia. Mas era o que tinha na mão como trabalho. Faze, o que?

A porta abriu, percebendo-se nitidamente o som do trinco destravan-do. Uma linda oriental saiu por ela. Ancas generosas movendo-se ondulantes dentro de uma saia branca de algodão. Parecia uma cena filmada em câmara lenta. A camiseta curta deixava a barriga nua, e pendia um palmo abaixo a partir dos seios, parecendo aumentar o volume de cada teta. Caminhava de pés descalços sobre o carpete alto. Carregava nas mãos as sandálias. Mickel apareceu na porta e ficou olhando a japonesa se distanciar pelo corredor. Olhou para Clark e balançou a cabeça franzindo os lábios para baixo. Depois começou a rir com deboche e sacanagem no semblante.

-Vamos lá garoto. Mostre logo o que tem para mim. Hoje estou começando o dia a mil por hora.

Mickel soltou o corpo naquela poltrona, toda cheia de alavan-quinhas. Clark sentou-se no sofazinho em frente. Mais uma vez teve o pensamento recorrente. Era sem dúvida uma cadeira que combinava com Mickel. Cafona de tanta ostentação. Neste dia correu os olhos pelo ambiente. Aquela coleção de posters apelativos na parede. A maioria dos vídeos tinha sua assinatura no roteiro. Havia um grande mercado, em milhares de locadoras pelo interior, para aquele tipo de filmezinho. Conseguira acertar a mão naquelas historietas cheias de bordões repetitivos. Sua qualidade era certo diferencial romântica que fazia com que o público incluísse também as mulheres. Era a mina de ouro. As mulheres se apaixonavam e os homens se excitavam. Car-pete roxo escuro, paredes com aplicação de fórmica negra brilhante, frisos dourados, faixas de espelho encrustadas. Parecia a decoração daqueles motéis de alta rotatividade de segunda categoria. Um toque final arrebatador no canto do escritório. Uma estátua de Vênus, deu-sa do amor, moldada em fibra de vidro com um metro e vinte centímetros de altura, no meio de uma fonte em forma de concha. Botticelli fast food era seu pensamento, toda vez que revia a cena. A água escorria iluminada por um facho de luz que ia mudando sua cor lentamente passando de um azul calcinha para um rosa luminoso.

Resolveu atacar antes de ser cobrado. Iria apenas sondar as possibili-dades.

-Mickel. Preciso de mais tempo para colocar no papel...

-Caralho seu viado. Você prometeu pra hoje. – Mickel explo-diu com raiva, e se levantou transtornado e agressivo. - Alias você tinha prometido para um mês atrás. E depois para uma semana atrás. Acabou a minha paciência. - começou a andar de um lado para outro. - Você ta pensando o que? Isto aqui é uma produtora. Filmes artísticos. Não to vencendo de tanto pedido pra novos vídeos. E você vem, e me fode. Não. Assim a rosca espana. Você tá me devendo. Quanto é que já te adiantei?

Uma boa grana. Depois vou mandar a Pat ver os recibos. Não tem dinheiro? OK, mas me paga pelo menos em história de filme.

-Não é história de filme seu idiota. É roteiro. Já te ensinei mil vezes. - Clark comentou com pouca paciência, e olhou de lado para a Vênus de plástico que pareceu estar com um sorriso sarcástico nos lábios moldados em branco sujo. A vida era dura. Cinco anos na faculdade de cinema. Um ano estagiando como figurante em Cinecit-tá. Aceitou um dia escrever um único pornô. Já se iam cinco longos anos. Certo que no início achava um tesão, literalmente, ver suas fantasias escancaradas e literalmente novamente nas pernas abertas enchendo a tela. Mas Fellini,Truffaut, Hitchcock. Este era o mundo que se sentia na obrigação de pertencer. Mas agora já tinha algo na mão para mudar tudo.

Mickel sentou-se na borda da mesa e encarou Clark com os frios olhos azuis-claros de sua descendência polaca. Levantou o dedo em riste de maneira ameaçadora.

-Vamos fazer uma coisa. Vou te dar uma semaninha. Nem digo três dias que tenho vontade. Mais vá lá. Leva uma semaninha.

Vou estar com todo mundo pronto, aqui. As putas, os cafetões. O pessoalzinho do estúdio. Chega direto lá embaixo pra começar a pri-meira cena da filmagem. Avisa a Pat dois dias antes o que vai precisar pra produção da primeira cena. - Mickel se aproximou. Num gesto inesperado, usando sua musculatura de halterofilista, pegou Clark de surpresa pelo colarinho e o puxou para cima, fazendo-o ficar em pé enquanto o olhava com raiva dentro dos olhos por um instante.

-Você levou minha grana.- depois o soltou de volta sentado na cadeira. Passou as mãos ajeitando no longo cabelo loiro, antes de continuar.

-Agora. Se não fizer o que estou falando, mando queimar você. - gritou alto. - É fim no teu roteiro. Não vai conseguir trabalho nem pra redação de obituário de jornal, por aqui.

Sorriu pela devolução ao contexto da palavra “roteiro”.

- Fora daqui. Mas antes, mais uma coisa.

Encaixa a japonesinha gostosa na “história do filme”. – mudando o enfoque, pronunciou as palavras com ênfase. - Você sabe. Prometi para ela. -Clark mordeu os lábios com raiva. Não se intimidava com as demostrações estúpidas de coação gratuita, marca registrada do polaco. Ficou em pé e se dirigiu em direção a Mickel que já sentara em sua cadeira. Parou por um instante e em seguida deu um murro no meio da mesa.

- Vou falar claro. - Mickel se suprendeu.Clark foi falado pau-sadamente enfatizando cada palavra Se tiver paciência de esperar meu próximo roteiro, vai encher o seu cusão de verdinhas. Agora se encostar mais uma vez sua mão... só vai assistir aos meus roteiros nos filmes dos teus concorrentes. – desabafou dando ênfase no final da frase, dizendo-a mais de vagar e com tom de voz crescente. Estou começando a me encher de você, seu produtorzinho de merda, destes videozinhos de merda, que sou obrigado a escrever para você. Tome cuidado. Não se esqueça de ler o meu nome em todos estes posters de merda que você espalha por sua sala e pelo teu mundinho de merda.

Mickel sentiu o golpe, por algum contexto, sem saber exa-tamente qual. Começou a sorrir de leve. Depois foi aumentado sua intensidade até a começar a gargalhar numa entonação um pouco forçada. Levantou-se e abraçou Clark meio a distancia, ao mesmo tempo em que batia em suas costas.

-Esta certo, esta certo, exagerei. Não precisa também ficar assim. Venha vamos começar de novo. – falou com entonação que refletia certo arrependimento. Forçado. Clark resolveu voltar um cen-tímetro para trás.

- Quero que você se foda, Mickel, mas vamos lá. Ainda não esta tudo perdido. O próximo vai ser diferente. Estou com uma idéia fantástica. O filme vai te colocar em outro mercado. Mas vai demorar em colocar a seqüência no papel. Se quiser, vai ter de ser assim - Mickel sentou-se.

- O que quer dizer com, vai demorar? Quer dizer. Vai demo-rara ainda mais? E eu o que faço. Fico aqui punhetando? Preciso fil-mar urgente. Se perder meu espaço, meu time, a concorrência vem e me arranca do chão. - comentou com braços abertos.

-Vai Clark, te empresto a japonesinha para você se inspirar. Ela te deixa nas nuvens. Para com isto. Entrega-me logo uma estó... um roteiro novo.

- Se esta com pressa, desta vez, pede para o, como se chama aquele espanhol maluco mesmo? Pede pra ele te fazer um roteiro. Uma rapidinha.

-Não. Ele é fraco. Você viu o “Assedio no Hospital”?

-Não tive o prazer. - na verdade Cark tinha visto. Na ocasião havia ficado curioso, e inicialmente um pouco preocupado com mais alguém escrevendo para a “Time Love”. Mas depois se tranqüilizou. Ninguém gostara do filme. Fracassara nas vendas

- Então Clark, eu preciso de filmes de arte como você sabe fazer. - apelou com uma entonação que pesava tanto falsa como ape-lativa.

-Mas que filme de arte, porra? Não tem arte nenhuma aqui.

Tento apenas doirar a pílula desta putaria toda que você me obriga escrever. Você sabe, desvio um pouco o foco, com um pouco de his-tória, de romance.

Não dá para passar no canal católico.

-Você tá sendo modesto. – falou enquanto pegava uma mol-dura de retrato que ficava sobre a mesa, mas que na verdade era um pequeno espelho. Ficou olhando os dentes com os lábios arregaçados. Depois começou a passar a língua neles. Fechou a boca e sugou com força alguma carninha talvez do jantar de ontem.

-Ta certo vou me virar por aqui enquanto, você acaba ai sua obra prima. Detalhe. Não tem mais nenhum tostão. Traz a história.

-Quero metade.

-Metade, do que?

- Do lucro do próximo filme. Você nunca viu nada igual. Vai estourar no mercado. Pura arte. Da para fazer com pouca grana.Tenho direito.

-Ficou louco? Andou cheirando muito Mickel contínuo a se olhar no espelho. Depois virou-se e falou.

- O próximo é só meu. Você esta me devendo. Não tem dinheiro? Paga em histórias de filmes falou dando enfase ao final da frase.

Clark sentiu profundo ódio. Como podia ter entregado sua vida a um filho da puta deste, pensou enquanto se levantava.

Virou de costa e se dirigiu para a porta sem se despedir. Assim que saiu da sala, a escutou berrar.

-PAT, MOSTRE PARA ELE O TOTAL QUE ADIANTEI.

Clark passou direto.

Já sabia.

Já sabia principalmente quantos milhões de lucros em troca de míse-ros trocados.

Mas desta vez faria a seu modo.

Enquanto se dirigia para o carro tirou o celular do bolso e fez a liga-ção. Alguém atendeu de imediato.

- Alfred, o roteiro é teu!