Das prateleiras ao mar
DAS PRATELEIRAS AO MAR
Newton Schner Jr.
Chovia. Quem, aliás, entende a mudança do tempo? Meu organismo, não tendo se adaptado, deu logo seus primeiros sinais de fraqueza.
Tendo economias à disposição, fui de encontro a um sebo.
Buscava o meu próprio “O jogador”, de Dostoievski, que ali fora deixado por alguém que o levara emprestado de mim. Mas não o encontrei novamente.
Acostumado com corredores vazios, espantei-me, reagindo, na seqüência, de modo positivo, quando notei o que muito provavelmente seria neto e avó à busca de um ou mais livros. Dava ela seus indicativos. Ditava as prateleiras a serem vistas, conforme a voz da experiência.
Visitar a um sebo se estando com economias é sempre um problema. À mente, recorremos a leituras que ainda não foram feitas, preços por vezes acessíveis e títulos novos recém-descobertos.
Comprei “A revolução dos bichos”, de Orwell. Não se tratava somente de uma obrigação moral. Seguia os passos do amigo Jonas, que em certa noite, em uma conversa sobre livros, disse ter se encantado com tal obra. Ele próprio me confessara que entre suas prioridades, estava “Ana Karenina”, de Tolstoi, cujo interesse fora despertado após ter passeado os olhos sobre o “Meu encontro com José Monir Nasser”. Tomava emprestada uma expressão de Nietzsche para afirmar que assim como com a música, a vida teria sido um erro sem os livros.
Seguia-se por “O Doutor Jivago”, de Boris Pasternak, no qual eu planejava mergulhar mais a fundo, recordando as cenas do filme, assistido faziam anos, conforme a memória. 565 páginas. Certamente não seria uma tarefa fácil.
Sempre ao adquirir tais obras, penso nas férias que me seria necessário tirar. Improvisar férias de mim mesmo, quem o sabe.
Antes de ali estar, enviava à terra do mesmo autor um pacote com trabalhos de piano e folders que retratavam nossa região. Junto, uma cópia de “Sobre as leituras e os escritos”, com uma dedicatória em português. Ao lado de Ana Ionesei e Franziska Biedermann, Kiril era a terceira pessoa no estrangeiro a receber um trabalho escrito meu.
Como, aliás, o tempo nos parece curto! Terei eu um dia a possibilidade de traduzir meus livros ao menos para o inglês?
Ainda em atraso, muito embora mentalmente composta, a carta histórica para João Manuel Simões.
Junto a uma obra dada a estudos lingüísticos de três colônias polonesas de Ponta Grossa, dei-me ao luxo, como em poucas ocasiões, de comprar um livro novo. Quase nunca eu o faço: primeiro, porque geralmente não encontro muitos livros novos que sejam verdadeiramente bons; segundo, porque são caros em sua grande maioria.
O livro em questão se chamava “Lorde Jim”, de Joseph Conrad. Ainda que não tenha feito sua leitura, indica-se que vem a ser uma história desenvolvida em alto mar.
Para onde Conrad quisera ir?
Hamsun, o norueguês errante, buscou a hiperbórea.
Os livros dos navegantes têm sempre uma aura de adeus. Assim, ao menos, entendi a “Fome” e “... e não consegue fugir”.
Teriam se cruzado seus barcos entre as tantas travessias?
O mar para Conrad quem sabe representasse o mesmo papel das montanhas em Hesse e Heidegger.
Rimsky Korsakoff teria iniciado, enquanto compositor, durante sua carreira na Marinha Naval de São Petesburgo.
Estando acertados mastros, velas e detalhes outros, por conta deste eterno marinheiro de primeira viagem, que, sob inspiração de Simões, navega porque é necessário, dou-me ao luxo de pausar o trabalho braçal e contar minha história:
“Minha mãe sempre esteve insegura, no que diz respeito ao meu contato com as águas. Não para menos: presenciou-me ainda pequeno sendo arrastado por uma correnteza, quando, em, um passo de mágica, saltei ponte abaixo. Nas viagens à praia, duplos eram os seus conselhos: ao meu pai, que tomasse conta de mim; e à minha própria pequena pessoa, para que não ousasse a seguir além dos meus limites.
A figura paterna sempre manteve seus métodos heterodoxos. Com o mar, não poderia ser diferente. Ao chegar àquela a quem ele, de modo muito amigável, definia como ‘capital do mundo’, buscava de imediato a uma papelaria. Comprava isopores em pequenos pedaços e colocava-os em um calção para nado, cuja obrigatoriedade era possuir zíperes nos bolsos.
Traumatizado por certa vez em que tivera camisa, dinheiro e chinelos roubados, desde um tempo decidira que para ir a um banho de mar, necessitava apenas de um calção e de seu chapéu, que, segundo os ensinamentos médicos, era o melhor meio de proteger-se contra o sol e conseqüentemente do câncer de pele, cujo maior alvo são as orelhas.
Assim, buscava sempre me levar mais ao fundo. Com a ajuda de um colete salva-vidas, eu o acompanhava.
Quando chegava a adolescência – época em que, para Aristóteles, estamos doentes –, já não mais o fazia. Permanecia com outras coisas no antigo apartamento. Ao chegar, ele sempre dizia a quilometragem que acreditava ter nadado, de um extremo ao outro.
O mais curioso era vê-lo nadar de chapéu. Com o auxílio de sua engenhoca, boiava em alto mar. Incontáveis foram as vezes em que chamou a atenção dos demais, a incluir os salva-vidas, dos quais até mesmo levou advertências, devido à idade avançada.
Uma das melhores sensações que já tive foi quando sozinho, em um entardecer cinzento, sentei-me junto a pedras, bem próximo do mar. Ainda na época, a seiva dionisíaca – o vinho – me acompanhava”.
Da prateleira, abriu-se uma porta onde hoje recordo esta navegação.
Por vezes, do livro abre-se uma expedição ao infinito. A libertação do espírito. E uma gaivota hiperbórea que diz: “Solo una vita non basta per me”.