O covil

Saímos meio às escondidas a caminhar, desviando dos pingos grossos da chuva, sentindo na pele uma batida intermitente ao nosso encalço. Causava-me um certo prazer, misturado com temor, um temor desconhecido, de que alguma coisa não andava bem. Era frio e escuro e as ruas desertas, como se o mundo todo se escondesse em suas casas, se refugiassem em seus domínios particulares, temerosos de uma investida qualquer, uma agressão da qual não tinha como desconfiar. Apenas as palavras reticentes de meu pai, os dedos frágeis e estremecidos da mãe segurando a bolsa branca, de alça, iluminada de vez em quando por algum raio preguiçoso que surgia ao longe. Os olhos de meu pai brilhavam também, mas de ansiedade. Olhava para os lados, sondava a esquina que desembocava na avenida, ouvia apitos, esfregava a ponta do sapato no paralelepípedo escorregadio que limitava a calçada. Atrás de nós o muro alto do cemitério. Seria este o temor deles? Não, era de alguma coisa mais palpável, muito mais perigosa e parecia que a cada minuto do atraso do ônibus, o monstro desconhecido se aproximava. E punha garras em todas as direções, pois não se sabia ao certo o seu destino, o seu rumo, o seu objetivo. Apenas me parecia que era tirano e faminto. Não respeitava mulheres nem crianças. Aparecia de súbito, oriundo do covil, burocrático e civilizado, oficial e correto, pronto a consumir o que de vida restava, mesmo na escuridão da esquina, de costas para o muro imenso do cemitério, tão grande quanto uma fortaleza. Mas com certeza, era mais forte e valente que meu pai, pois ele o temia. Temia mais do que o temporal que se prenunciava, esquecido das trovoadas encobertas, anunciadoras da intensidade das chuvas. Um vento frio fustigava-me o rosto, que de branco de cera, ficara branco de gelo. Minha boca doía, os lábios rachavam e a testa febril, testemunhada pela mão doce de minha mãe. Via aflição nos seus olhos, nas poucas vezes que conseguia encará-la. Sempre conversavam sussurrando, temerosos de meus questionamentos. Um barulho de tropas ao longe, e uns apitos contínuos e sinalizadores, como verdadeiras senhas, talvez emboscadas para civis como nós. Meu pai apertou-nos junto ao corpo e levou-nos para o portão enorme do cemitério, encostando-nos nas grades, mas protegidos por uma espécie de tapume que cobria o portal e nos deixava de alguma forma ocultos. Senti os dois corações bem perto, batendo forte, agitados, assustados. Minha cabeça não chegava aos seios apertados de minha mãe, de sutiãs acolchoados sob blusas em buclê e casacão de lã, aberto como tenda. Nem na axila de meu pai, que estendia também a japona rala e esburacada, consumida pelo uso intensivo na fábrica e nos discursos pela liberdade. Dobrada em minha cabeça, agora sentia-a molhada e fria, inchada na água plangente. Estávamos juntos, os três e dos medos deles eu não tinha o que temer. Ao 10 dez anos o que minha fantasia projetava além disso, o que provavelmente surgisse detrás das grades. Imaginava uma mão descarnada, onde ossos porosos surgissem, determinados a atacar-nos e puxar-nos para dentro, impelindo-nos ao ambiente tétrico do mortos. Mortos que estavam sendo importunados em sua privacidade sagrada, cujas almas desgastadas e infelizes, numa noite de chuva e frio, voltavam-se contra nós para se vingarem. Por isso, meu coração estremecia assustado e minha voz emudecia e minhas pernas finas, de calças curtas e botas inundadas, batiam uma na outra, num tremor inexorável.

Não muito longe, uns faróis pequenos surgiam na rua enlameada, cujos paralelepípedos irregulares luziam, formando pequenas estradas pontiagudas, produzindo caminhos que agitavam o coração de meu pai. O ônibus verde e amarelo sacolejava na escuridão, e embora não víssemos as cores, sabíamos que se tratava dele. Aquele design arredondado, as janelas oblíquas, das quais tanto avistei as ruas ensolaradas de dias mais felizes. Mas ele parece se desviar do caminho cotidiano, como se um obstáculo enorme se interpusesse entre a nossa liberdade de tomá-lo e voltarmos para casa e a incerteza de ficarmos na chuva à espera do ferrolho da ditadura. Era do que meu pai sussurrava naquele ano de 65, no qual o mundo se mudara de lado e o toque de recolher se anunciava com os fuzis.

Agora um vento frio acelerava nossos sentimentos de medo. Percebi que meu pai falava por senhas, quando avistou o soldado, embora as tropas estivessem longe e apenas um carro ficava na esquina, com os faróis desligados. Não entendia as palavras contravenção, nocivo, subversivo, estorvo. Mas eles se falavam assim, balbuciam coisas disformes, bocas que se abriam na chuva, impelidas pelo vento frio e fatal, mesclando ódio entre irmãos. Minha mãe afirmou os dedos em minha cabeça, pegando-me pelos cabelos, meu pai ouviu-o quieto. O ônibus da linha se afastou do caminho, devagar. As luzes se apagaram e apenas a fumaça do cigarro do motorista ressaltava embaçando a vidraça, que vez por outra, se enchia de luz. Levaram meu pai e minha mãe segurou-se à grade, temendo a fera do covil, temendo o ultraje, temendo por nós. A chuva amainou. Meu pai sumiu na cerração que tomava conta do caminho, sem antes dar um último olhar, esperando que retribuíssemos emudecidos. Nada mais queria de nós, a não ser ver o que deixava pra trás. Talvez para sempre. Minha mãe segurou-me mais forte, me abraçou e as lágrimas lavaram meu rosto. Quando não mais vi a silhueta de meu pai, voltei para as grades do cemitério e meu coração ficou tranqüilo. Nunca mais temi as almas desalmadas, desgastadas e vingativas. O monstro estava lá fora. No coração dos homens.

Gilson Borges Corrêa
Enviado por Gilson Borges Corrêa em 13/11/2006
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