RATICIDA

Trata-se de um vale. Nos encravamos aqui. Nossa cidade. Crescemos aos poucos. Nossos primeiros nem existem mais.

Mesmos envoltos pelas montanhas, não estamos isolados. Periodicamente somos invadidos pelos intrusos.

Não fosse essa maldita plantação e a pretensão de expansão, ainda seríamos puros. Ninguém teria por que vir a este lugar tão distante. Mas, sempre nessa época, uma nova leva de estranhos circula por nossas ruas. Condescendentes em excesso, nossos jovens, nossas meninas principalmente, distribuem sorrisos, ofertam acolhida.

Poderia não ser assim. Se fosse estabelecido que não concordamos com os estranhos em nossas terras, a plantação não teria razão de existir. Sem a plantação seríamos como sempre fomos. Teríamos nossa terra. A subsistência estaria garantida com o trabalho de cada um. Não haveria necessidade de dividir a cidade com aqueles que vêm e acabam se estabelecendo.

Não deveria ser assim!

Haverá um dia em que nossas terras ficarão estéreis, não germinarão nem um mísero fruto dessa plantação que resseca nosso solo.

E jovens são condescendentes à novidade. Coitados dos nossos jovens que nem sabem da antiga reclusão, que desconhecem a vida entre poucos.

Padecemos com a falta de espaço.

Antes a casa era ampla, arejada, eu sabia que havia espaço a percorrer entre os cômodos que já serviram de morada a gerações da minha família. Mas a vida tornou-se cara, inflacionaram o valor dos alimentos e nosso solo não nos alimenta mais. Manoela decidiu alugar os quartos que não ocupávamos. Tanto espaço que ela achou por bem recepcionar os intrusos em minha casa. Também me alimento do aluguel, não poderia deixar de produzir renda uma vez que a terra não é mais cultivável e nem serve mais a este propósito.

“É para o bem da nossa cidade!”, Manoela acreditava inocente.

Nos quartos de cima o calor me sufoca. Os bancos da praça estão apinhados dos meus inquilinos que bebem, falam alto, empobrecem a visão da minha janela com seus acenos de falsa cordialidade e não me deixam dormir.

Antes a cidade era tão tranquila, hoje se enche de botecos, putarias e perversões. Coitados dos nossos jovens que viram a cidade devastada sem ter parâmetros para ponderar sobre o que é bom ou ruim.

Resta-me buscar respostas.

Abro a bíblia ao acaso, apesar de todas as páginas marcadas, apesar de já ter muito apreço por determinadas passagens.

Encantam-me as passagens. E tenho procurado muito uma resposta em algo que já li e esqueci. Nestas páginas há de ter uma resposta. Eu já li. Estudei quando os primeiros estranhos começaram a chegar e eu soube que era para nossa perdição.

Eu também, de certa forma, me perdi. Afinal, sobrevivo o dinheiro da plantação; indiretamente, mas não deixei de consumir. Não deixei de me acomodar com as possibilidades trazidas pelos estranhos. Apesar de errado, apesar de eu querer renunciar. Houve outros tempos que me fizeram mais sentido, lavrando a terra me sentia digno.

Pobre Manoela que não compartilhava dos meus temores. Agora já falecida.

Manoela faleceu pouco depois daquela criança que vivia no cômodo de baixo. A criança esmoreceu aos poucos, olhos sem vida, intestino saliente. Morreram sabe-se lá de que. Primeiro a menina, depois Manoela que nem foi atendida, nem lhe deram importância em meio a tanta gente adoentada esperando tratamento. A doença se disseminando nos corredores do ambulatório. E nem preparados estávamos. Nunca houve necessidade! Sempre fomos saudáveis comendo o que produzíamos, bebendo a água que brotava da terra, sem tratamentos e suas químicas.

Pobre Manoela que preferiu acreditar que eu estava louco, que estava velho e rabugento ao ser nostálgico. Eu queria minha cidade da maneira que era: sem estranhos. Mas há pouco que possa ser feito. Ela dizia que o futuro aponta lá na frente, uma locomotiva que não pode ser freada. O crescimento é inevitável, eu sei. Por isso Manoela morreu, não acreditou nas minhas desconfianças.

Observo pela janela, ouço seu rastejar no andar de baixo, e seus acenos me causam nojo. Tudo porque eu dividi no começo.

Mas assim que Manoela e a criança morreram, eu disse para quem quisesse ouvir que eram esses estranhos que ocasionaram a peste. Traziam a desordem e o vício à nossa terra tão castigada.

Tentei angariar seguidores, alguém que apoiasse minhas verdades, mas as pessoas se contaminam rápido. Da mesma forma que os males acometiam as pessoas — tão viral quanto —, os homens se deixaram enganar pela camaradagem, pelos produtos que entravam na cidade. E os jovens não têm parâmetros. Para os jovens eu sou apenas um velho.

Agora que eu disse, os inquilinos já sabem que os desprezo. Deixei o inimigo saber que o observo da janela. Não pagam mais o aluguel e não veem a hora de eu estar a mingua, morrendo para que possam ocupar a casa. Se eu digo para alguém, me perscrutam com olhares descrentes.

Agora é mais difícil por que sabem que eu os desprezo. Os inquilinos sabem. Agora um tiro disparado da minha janela terá saído da minha arma e da minha intolerância a esses vermes. Não tenho como mentir, provar o contrário.

Não disponho da arma. Sei bem que necessito de outro meio. Para subsistir, para não adoecer. A bíblia terá a resposta. Mas Deus tem me decepcionado; Ele não esteriliza o solo com uma seca violenta que murche todo o cultivo daquela plantação nem trazido inundações com as chuvas de fim de ano como venho pedindo em minhas orações. As respostas me faltam justamente quando estão mais próximas. Deus foge para não ter coautoria, para não ser cúmplice da matança. Estou decidido de que tenho de fazer algo para manter minha subsistência! Mas se Ele foge, por que me deixou o Antigo Testamento e todas as possibilidades que, durante todos esses anos, desde que os estranhos chegaram, venho marcando as páginas? Por que me faz olhar para o céu esperando que Seu castigo caia como bombas neste vale, adubando com cinzas o solo para as colheitas vindouras? Importo-me pouco em me transfigurar em uma estátua de sal se me for permitido olhar o renascimento desta terra que também é minha por herança.

E sou velho. Não esperam que eu reaja depois de ter reclamado — aparentemente minha única forma de relutância.

Um tropeção na escada, uma osteoporose recém descoberta que me invalide numa cama já é uma desculpa. Uma ausência proposital que resulte em tempo para planejar como será feito.

E as pessoas já estão morrendo. A cada dia que passa nosso cemitério vai se enchendo por ter sido planejado somente para mortes esparsas, anos a fio sem que tivesse uso. Estranhamente sinto que vai se aproximando minha hora. Mas presságios de morte são coisas de velho, como diria Manoela.

Então, para que eu seja válido, para que aconteça antes da velhice me impedir com todos os temores que traz consigo, eu preciso fazer. Com estilo, com doses de egoísmo. Como se eu fosse um suicida subindo em uma torre de energia. Se eu decidisse morrer, subiria na torre sob pedidos para desistir, para que eu não atrapalhasse uma partida de futebol na televisão, um telejornal ou uma novela. Uma torre para que houvesse luz na minha morte. Todos os outros às escuras.

Uma noite permanente. Reflexões. Coisas de velho.

Coitada da Manoela que afirmava que eu estava louco. Queria que eu bebesse chás. Bruxarias. Simpatias para eu suportar os inquilinos. Não quero propriedades calmantes, efeitos psicotrópicos. Não bebo.

A água é o bem mais precioso neste vale. A chuva que virá apenas no fim do ano, fraca como sempre. Nada de inundações. O céu não me traz novidades; Ele ainda este relutante, não partilha dos meus intentos, da minha falsa doença, meus ossos frágeis, embora saiba que são justificáveis.

É preciso interferência humana para que o solo germine, para que a água brote da terra e sede seja saciada. Mas são homens demais para fazer tudo acontecer, todos estranhos perambulando pela minha cidade, residindo na minha casa.

Quero que tudo acabe. Sem Manoela tudo é fardo. Não sei se tenho forças para carregar. Aguardo as respostas que as páginas insistem em não dizer.

Fecho a bíblia. O antigo não me diz nada de concreto. Estátuas de sal!

E aos poucos as pessoas vão morrendo. Adoecem e em pouco tempo o ventre se avoluma, incha abrigando vermes. Coitados dos nossos jovens que não verão o dia de amanhã. As meninas que caem no engodo desses estranhos. O ventre cheio.

De certo que há necessidade de que algo seja feito. Afinal, as mortes estão chegando. É possível que Ele não tenha me esquecido, seja cúmplice, coautor. Mas a minha parte ainda está pendente. Sei o que tenho de fazer. Não será a primeira vez. O surto viral do ano passado não teria ocorrido se eu não tivesse feito acontecer.

Pobre Manoela que desconfiou da minha loucura.

Preciso ser cauteloso. Discrição, força de vontade, obstinação por um bem maior. Mais uma vez!

Subir os degraus.

Com tantos degraus é preciso tomar cuidado. A ferrugem já come o ferro assim como a osteoporose come meus ossos.

Todos sabem que estou doente. Fiz com que todos soubessem, reclamei o bastante para não levantar dúvidas.

Com tantos degraus é preciso não olhar para baixo, para os lados. Sem suicídio quando eu estiver lá em cima. Eu não posso morrer. Se eu não vir os resultados, terá sido tudo em vão. Tanto esforço sem um regalo para os olhos. Por isso a preparação. Por isso é que se dever ser meticuloso, pensar em tudo. Engarrafar a água, estocá-la, escondê-la de modo que ninguém descubra e venha implorar um gole — inquilinos sedentos de tudo o que é meu.

Antes que a caixa d’água que abastece o vale seja envenenada, preciso assegurar que não beberei. Preciso me assegurar de que sentirei os males e saberei fingir.

Coitada da Manoela que não viu aonde a loucura me levou. No alto da caixa d’água, à noite, com um galão de veneno para ratos a tiracolo. Tantos degraus para subir, água para engarrafar, tantas pessoas que precisam morrer. Por ser tanto, em demasia, é que traz motivação. Até um pouco de histeria, mas preciso me concentrar.

Tantos ratos que se espalham. Tantas jovens que engravidam desses homens estranhos, trazem seus filhos para dentro da minha casa, sorrisos nos lábios, êxtase passageiro por esses homens que ao final da safra vão embora. Mais crianças que se bandearão para minha casa carregando consigo suas doenças.

Questão de consciência. Meus préstimos a estes que se deslumbram com o passageiro. Por isso devo fazer; por nossos jovens.

Derramo todo o conteúdo. Em excesso para não haver falhas. Para matar muitos ratos.

Manoela que observe lá de cima — que Deus a tenha! Tão próxima de mim antes de os inquilinos chegarem, antes de haver roupas para lavar e tantos homens para alimentar. Pobre Manoela que tanto amei; a primeira a desconfiar da minha sanidade. A primeira na safra passada. Bebeu antes de todos — tão singela, Manoela deu um gole à criança —, a dosimetria exata. Sedenta Manoela. Um galão para envenenar todos os ratos.

Fabiano Rodrigues
Enviado por Fabiano Rodrigues em 11/04/2011
Código do texto: T2901783
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