Fundo da América do Sul Parte 6

O SANTUÁRIO

Com um pouco de receio e a garganta seca, enfiei a chave na porta, entrei, na sala tinha uma enorme estante com muitos discos e livros, fiquei pensando quanto tempo levaria para escutar todos aqueles discos, ou ler os livros! Tinha um sofá surrado que um dia deve ter sido de um vermelho vivo, uma mesa de centro com uma garrafa de vodka e muitas bitucas no cinzeiro, um quadro de Van Gogh, um aparelho de som “três em um” CCE, com duas baitas caixas de som, uma janela com cortinas, que deveria entrar muito sol pela manhã; Atirei-me no sofá, estava realizado, vou cuidar da casa do Vitor com gosto, pensei; observando os livros vi que tinha uma pasta entre eles, peguei e abri sobre a mesa de centro, eram muitos manuscritos de debates políticos, pensamentos com ideais e poesias; lembrei que ele havia dito “se eu quisesse saber sobre ele, deveria ler seus livros e escritos, só os livros irão te abrir a mente e a maneira de pensar correto, não acredita em tudo que passa na televisão e nos jornais, é muito fácil manipular as pessoas através deles; lê, lê muito e depois terás tuas próprias conclusões, os livros te dirão o que tenho em mente e como gostaria de mudar o País”.

Foi quando descobri Construção de Chico Buarque, Alegria, alegria de Caetano Veloso, Expresso 2222 de Gilberto Gil, Caminhando e cantando de Geraldo Vandré, Raul Seixas,... Ali descobri que através da música poderia fazer a minha parte, e mostrar os pensamentos de Vitor enquanto ele estivesse fora do País, que agora eram os meus também; há pouco tempo, havia tanta qualidade musical, os jovens de quinze anos atrás tinham um objetivo político, brigavam por seus ideais; mas anos depois viria quase que uma decepção coletiva por seus ídolos, Chico deixou seu ativismo político e dedicou-se mais a literatura, Gil tornar-se-ia Ministro da cultura de um Presidente da República que na década de setenta tinha sido o maior sindicalista do País, e um braço muito forte contra o governo como oposição; mas tornara-se Presidente do País na década de 2000! Onde toda uma geração se frustrou com sua atuação governamental, ele no inicio tentou fazer modificações radicais contra os poderosos, mas já logo em seguida descobriu que o poder de um Presidente é muito menor do que o poder de um primeiro ministro em um outro País sério; acabou deixando passar os dias de seu mandato, talvez com uma guerra interna e uma decepção incontrolável, mas acabou se reelegendo e o País tomou rumos de democracia muito elogiado no exterior.

Vejo os jovens da primeira década do século XXI, um tanto apáticos em relações políticas, era uma era onde o individualismo imperou, os jovens, dessa época, eram individualistas que se reunião pela internet e que iriam boicotar um posto de gasolina por estar mais cara a gasolina, não freqüentariam um mercado por seus produtos não ser de primeira linha, mas na realidade esses movimentos não passavam de “virtuais”! Ou seja: - Todos aderiam a o movimento modista, mas continuavam abastecendo o carro naquele posto de gasolina, continuavam consumindo no mesmo mercado onde a mercadoria não era de boa qualidade! E a noite voltavam para seus TOTENS VIRTUAIS, para descer o cacete nos mesmos estabelecimentos! Era difícil de compreender aquela geração; claro que tinha os que pensavam diferente, e acabavam fazendo uma faculdade, outros tornaram-se donos de estabelecimentos, ou seja a hipocrisia da sociedade continuava como sempre andou nesse País.

Coloquei um blues no toca-discos, e comecei a ler aqueles papeis e fui descobrindo um mundo novo! Um mundo que eu não conhecia, estava totalmente enganado com o que via na televisão e o que as pessoas falavam na rua, por que todos estavam se enganando? O que estava acontecendo no meu País e eu não sabia? No meio dos papéis havia um discurso que fiquei sabendo depois que tinha sido o motivo da fuga de Vitor, ele havia subido no chafariz da praça Coronel Pedro Osório e no meio de sua indignação falou aos quatro ventos aquele texto, no mínimo deveria ter algum daqueles homens do simpala preto ouvindo também; comecei a entender a situação, e me interessar sobre o que ele pensava e agia, palavra que eu começava a querer colocar em prática. - dizia assim:

Chegou a hora!

Está na hora!

Quando será que as guilhotinas voltarão?

Onde os carrascos com coragem?

Onde estão os heróis?

Lubrifiquem as guilhotinas, imperem corações;

Lanças, lançadas contra os castelos.

Fúria de fome; fome de saúde, fome de educação.

Polir os pensamentos, polir as espadas,

Armaduras modernas construir.

O novo tempo pára no calabouço;

Calar o ladrão impune.

Como punir o rei?

Como punir o bispo?

Como punir o poder?

Onde estão as guilhotinas,

Onde a bravura contra os poderosos?

Gritos aos ventos,

Gritos famintos,

Sana insanidade.

No coração,

Indignação, repulsa.

Levantem-se, adormecidos!

Levantem-se, zumbis do ridículo!

Lutem por seus diretos!

Sobrevivam à fogueira dos feiticeiros!

Homens de bem, sofridos,

Homens honestos,

Diante da muralha intransponível,

Não conseguem ver o poder,

Onde tudo acontece,

Entre gargalhadas e conchavos.

Quando voltarão as guilhotinas?

Dizem que ele foi muito aplaudido, ficou grato pelos aplausos, chegou a pensar que tinha conseguido mudar a cabeça de alguém, mas naquele momento chegou à polícia baixando o cassete em todo mundo, foi a maior zorra na praça, crianças, mulheres, velhos quem estivesse no meio da praça ouvindo ele entrou no pau! Foi quando ele percebeu que deveria se retirar para não morrer ele e seu ideal, sem poder pelo menos ter filhos livres no futuro, sem a repressão que as pessoas estavam sofrendo.

Aquele texto foi uma pancada na minha cabeça! A partir daquele momento vi que a vida era muito mais que sexo, drogas e rocking roll! Existia um mundo sofrendo além de minha casa, além de minha escola, além dos muros que cercavam qualquer ideal libertário! O que meu pai tinha para me dizer? Ele era tão ausente que não tínhamos condições de falar sobre “assuntos de adultos”, eu era muito verde para conversar coisas tão sérias com ele!

Aquela noite não consegui dormir direito, a cena na praça, as pessoas apanhando, passou várias vezes em minha mente como um vídeo - tape. Até que adormeci um pouco antes do relógio despertar.

JorgeBraga
Enviado por JorgeBraga em 10/04/2011
Reeditado em 04/06/2011
Código do texto: T2900938