As Faces da Moeda – Memórias de Clara
Era um domingo de sol e eu insisti com James para irmos ao rio fazer um piquenique. Ele relutou, não queria ir, de jeito nenhum, mas acabou por ceder. Ele jamais conseguiu dizer não pra mim. Estávamos completando um ano de casados e eu esperava nosso primeiro filho. Feliz com o nosso piquenique pus-me a arrumar tudo. Preparei a torta de amendoim que ele tanto gostava, outra de maçã, fiz suco de uva do nosso parreiral, colhi algumas frutas do pomar que tínhamos nos fundos de casa, escolhi a toalha xadrez, que ganhei de minha sogra, arrumei tudo numa cesta e fui arrumar-me da melhor maneira possível pra passear com meu esposo.
Chegamos ao rio lá pelas três horas da tarde e resolvemos nos instalar embaixo de uma gigantesca figueira que simplesmente me encantava pela suntuosidade de sua extensão. Estendi a toalha no chão, enquanto James colhia uns galhos, a fim de fazer uma fogueira para espantar os insetos que insistiam em nos perturbar o sossego. Fogueira acesa e lanche arrumado, nós iniciamos nosso piquenique. James era o homem mais carinhoso do mundo, tratava-me qual uma rainha, ainda mais agora que nosso primogênito estava a caminho.
Deliciamo-nos com as tortas e o suco da uva que havíamos colhido com as próprias mãos, namoramos, passeamos de mãos dadas, fizemos nosso programa favorito de quando ainda éramos noivos. Trocamos juras eternas de um amor incrivelmente grande! Assim as horas foram passando e, quando percebemos, o pôr do Sol já estava próximo. James parecia-me ora inquieto, ora distraído, como se estivesse preocupado com algo e que não queria contar-me. Assim, quando percebeu que o Sol já se poria, convidou-me ao regresso, mas eu, como toda mulher, romântica que sou, insisti para que ficássemos e contemplássemos aquele anoitecer à beira do rio. Apesar da inquietação que o acometia, mais uma vez James não quis contrariar-me e, após demorado suspiro, deu-me a mão e rumamos até a beira do rio para assistirmos ao espetáculo da aurora.
Encostei minha cabeça no ombro o meu querido James e impassível fiquei ali, a contemplar aquele céu, aquele misto de cores, como se Deus tivesse ali, jogado ao bel prazer, uma caixa de tintas multicoloridas. Porém, de repente, ouvimos um estrondo, um ronco ensurdecedor, como se algo tivesse desabando. Eu, absorta naquela maravilha, assustei-me com o barulho e com o grito de pavor do James ao olhar para trás e terr a pior visão que alguém jamais imaginou: - a dos últimos minutos de vida! Uma torrencial enchente estava chegando até nós, que, tão distraídos estávamos, não percebemos a tempo para sairmos dali.
E o rio, que antes parecia-me apenas um regato cristalino, que por ali passava, transformou-se na maior demonstração de força que a natureza podia nos apresentar. Levava tudo que encontrava. Troncos imensos arremetiam-se contra as encostas, e a única coisa que pudemos fazer, foi agarrar-nos aos galhos da figueira, que parecia ser o único refúgio que permaneceria inteiro por ali. E, naquela situação desesperadora, agarramo-nos o mais forte possível, mas não deu, a água nos levou rio abaixo. James nunca soube nadar, e eu, apesar de saber, tive que salvar minha vida, e a do bebê que eu carregava. Nadei o mais que pude, mas James desapareceu no meio daquele turbilhão. Nunca mais o vi, pelo menos com vida. Ele tentou dar-me a mão, mas eu não consegui. Foi a pior coisa que eu passei em toda a minha vida, algo que não se deseja nem ao pior inimigo. Mas a hora que eu pensei que também fosse sucumbir, o próprio rio que parecia quere engolir-me arremessou-me para fora de suas águas. Eu caí no meio do mato, próximo à margem. A exaustão era tanta, que eu acabei desmaiado e acordei somente dois dias depois, com muita tosse, já na casa de meus pais. Um ribeirinho encontrou-me por ali e, sabendo de quem eu sou filha, levou-me até eles.
Acordei muito agitada, com uma tosse insistente e uma sensação de sufocamento, de um quase afogamento. O bebê eu soube que havia perdido e que o corpo do meu esposo tinha sido encontrado, enroscado em uma árvore, não muito longe do local do afogamento. Sofri muito, pois havia perdido o homem que eu amava e também o amado filho que esperávamos. E aquela tosse e falta de ar horrível permaneciam em mim, incessantes. O tempo passou, eu casei-me novamente, com o Harold, jovem viúvo, assim como eu, pai de Melissa. Ambos perderam a doce Lisa no parto da menina. Tivemos mais dez filhos, 85 netos e já temos dezoito bisnetos, uma família linda, que alegra-me a vida. Sou feliz. Porém a falta de ar sufocante continua, as vezes de leve, as vezes chega a ser torturante, como se alguém tirasse-me o ar. E aquelas tristes lembranças, daquele dia fatídico e do bebê que eu não pude acalentar viverão no meu peito por toda a eternidade...
OBS: Amanhã teremos a outra face da moeda...