O Vento, o Tempo e as Memórias*
Escuto o vento assobiando na minha janela. E é um vento parecido com o que soprou quando nasceu meu primeiro filho. Mas naquele dia o vento tinha uma conotação diferente: trazia um ar novo, fresco, limpo, de renovação e futuro. Eu era jovem, muito jovem; coloquei meu rosto para fora e fechei os olhos, aspirando como podia tudo o que vinha junto com o movimento do ar e sentindo cheiros diversos. Senti o cheiro da umidade da chuva ao longe, da sopa que fervia no caldeirão da vizinha, de flores distantes, de folhas secas queimadas, de mato fresco. Meu nariz parecia um laboratório.
(Senti também que o vento espalhou com ele um pouco de minha alegria imensa de ser mãe...)
Entendo que o vento nunca é o mesmo, como o dia que passa não é igual ao anterior. Ainda que o cotidiano vença, os dias nunca se repetem. Há que se entender isso para assimilar os anos que passam como o vento. Nunca cheiros iguais, nunca dias iguais, nunca uma vida igual à outra... Minha vida também voou e eu não cheguei a me dar conta disso. Assim como o vento passou e eu nem sempre aspirei o seu cheiro para distinguir de onde ele vinha e por onde passava.
Sim, minha vida passou; meu filho, que nasceu no dia do vento instigante, já tem filhos que já têm filhos. Meu nariz não é o mesmo, quero dizer, não consigo perceber com tanta nitidez os odores diversos que compõem o perfume do vento. Meus olhos também não enxergam nada bem e é apenas com a destreza adquirida pela prática que escrevo isto num computador, peça inimaginável quando o vento tinha todos aqueles cheiros.
Todas as minhas lembranças estão escritas – em caneta tinteiro sobre folhas amareladas, em pedaços de papel com caneta esferográfica, em folhas soltas datilografadas, em algum lugar desta máquina assombrosa que se lembra de tudo. O tempo passa como o vento e as lembranças são fugazes como os odores que ele traz consigo. Sempre tive medo de esquecer, por isso escrevo: já que não percebo o vento tanto como antes, ele pode se revoltar comigo e levar minhas memórias. As folhas soltas ele pode até levar embora, mas da memória – minha e, agora, do computador – elas jamais se perderão.
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*Uma curiosidade: consta que Érico Veríssimo havia dado à sua famosa trilogia o título inicial de "O Vento e o Tempo", título este que foi invertido quando da sua impressão.
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Este texto faz parte do Exercício Criativo "O tempo passa"
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