Cremado
Rasguei os últimos fragmentos das fotos e atirei na lata de alumínio, que transmutava suas cores por conta das chamas.
O fogo, àquele instante, me acalmava. Seus movimentos livres, suas idas e voltas, os saltos das labaredas; o som do alcóol sendo consumido, o estalar das coisas que se tornavam cinzas; o calor que me inundava e me fazia bailar, sozinho, um bolero em tango; a luz, que projetava nas quatro paredes peças de encaixe da minha Sombra, me denunciava, levava para si segredos lacrados em véus e os deixava despidos como se tivessem acabado de nascer.
Pensei uma primeira última vez nas farropilhas que acabei por cessar, e deixei queimando ali os numeros e nome que me davam àquela identidade tão àspera. Atirei as vestes do último personagem ao fogo e cremei aquelas lembranças num velório sem missa, lágrimas e consolos.
Taquei um pouco mais do gel etílico e vi salamandras místicas dançarem enquanto eu trancava o apartamento com um forte cheiro de gasolina. Esqueci de propósito a chave e um corpo para servir de cobaia. Acendi um cigarro e lembrei que desta vez não fumaria, seria inocente e puro. Num ato irônico de tão certeiro, joguei o cilindro de tabaco e a ponta em brasa tocou o rastro de combustível, que fugia pela fresta da porta. Pude imaginar, enquanto descia pelas escadas de emergencia, o fogo nascendo e percorrendo o labirinto que fiz enquanto esvaziei uns cinco galões.
(...)
Parei na calçada, diante de um prédio interditado que estava em chamas. Alguém ligava para os bombeiros e eu apenas admirava o fogo estupefato.
Nunca tinha visto um incêndio antes e ele me excitava. Lembrei que tinha uma entrevista de emprego pelas redondezas e me perguntei porque tomei aquele caminho, ou principalmente, como fui parar ali. Acho que o destino me levou ao fogo para que me renovasse o espírito nesta nova vida em nova cidade.