À PROCURA DE DEUS

A situação era desesperadora. Desempregado, alojado em um barraco que lhe fora cedido por um amigo, próximo à cidade universitária, desde que deixara a casinha onde morava, por não mais conseguir pagar o aluguel. O único sapato que tinha, já se encontrava bastante desgastado pelas andanças à procura de emprego. Quanto as vestimentas, ainda tinha algumas roupas que poderiam ser usadas. De dinheiro, só alguns trocados, escondidos no barraco para não ceder à necessidade de usá-los. No bolso, algumas moedas e vales transporte do último emprego. E por aí vai. Mas as palavras daquele homem de terno e gravata, com um livro de capa preta na mão, a gritar com convicção quase histérica, de que procurasse o Senhor Deus e todos os seus problemas seriam resolvidos, reacendeu-lhe o ânimo. Restava a questão: onde encontrar o tal Senhor Deus?

Perambulou por algumas ruas, sem saber exatamente para onde se deslocava, afastando-se do grande centro, quando defrontou-se com um grande e luxuosíssimo condomínio de apartamentos. Logo pensou: é aqui. O Sr. Deus só pode morar num lugar assim. Aproximou-se da portaria e logo foi abordado por um segurança. O homem era um verdadeiro “armário”.

- que deseja?

- gostaria de falar com o Sr. Deus. É aqui que ele mora?.

O Segurança, com ar de autoridade, tomou à mão um rádio de comunicação, o que nem seria necessário, entrando em contato com a portaria, indagou:

- Alô Severino? Câmbio. Tem um maluco aqui procurando por um tal de Sr. Deus. Tem algum morador com esse nome?

A voz respondeu do outro lado, com aquele ruído característico.

- Não. Não tem não. Despacha esse cara.

- OK. Desligo, câmbio.

- Aí, amigo, não tem ninguém com esse nome. E é bom ir se afastando que não queremos estranhos por aqui.

Não falou, mas pensou:

- é cada um que aparece.

Retirou-se frustrado, mas não desanimado. Tinha sido apenas a primeira tentativa. Continuou caminhando sem saber o quanto, ansioso que aparecesse a desejada placa “precisa-se”. De repente viu-se ao pé de um morro. As construções sobrepostas umas às outras, assemelhavam-se a brinquedos montados. As mais acima, pareciam estarem mais perto do céu, quase alcançando as raras nuvens que adornavam o azul infinito, ainda mais claro sob um sol abrasador. Uma única rua dava acesso àquele emaranhado. Pensou: quem sabe não é aqui que o Senhor Deus reside. Talvez em uma daquelas casinhas, lá em cima. Aproximou-se confiante. Logo lhe veio ao encontro um sujeito mal encarado, com aparência pouca amigável, que lhe inquiriu de forma ríspida:

- quem é você? Que quer aqui? De que comunidade é? Malandros não são bem vindos. A nossa área já está completa e não queremos mais ninguém ocupando nosso espaço. Se manda.

- eu queria apenas falar com o Sr. Deus. Ele mora por aqui?

O homem desatou numa risada sinistra e assustadora. Dirigindo-se a outro semelhante a ele disse:

- Ô Assombração. O homem tá com um prestígio danado. Já tá sendo chamado até de Deus.

A resposta veio no mesmo instante.

- O hôme num gosta dessas coisas, tu sabe. Isso deve ser cabra da polícia atrás de informação. Ameaça com um “corretivo” e manda andar.

- Ta bem.

- O senhor se retire. Vá procurar sua turma e não me apareça mais aqui. Não vai ser nada bom pra você.

Dessa vez saiu com um certo ar de frustração. Andou um pouco mais, retornando ao grande centro que fervilhava com pessoas e carros indo e vindo apressados. Sentido-se cansado, sentou-se em um banco da praça de onde pode contemplar a beleza dos jardins, borboletas esvoaçantes e namorados a namorar. Vieram à mente as palavras do homem do livro de capa preta. Instintivamente, observou um imponente edifício, tendo à frente uma enorme escadaria e dois homens galantemente fardados à entrada. Logo pensou: não há dúvida, é aqui que o Sr. Deus mora. Tem até guardas. Confiantemente aproximou-se do Palácio do Governo dirigindo-se a um deles:

- Por favor, é aqui que mora o Sr. Deus? Eu gostaria muito de falar com ele.

O guarda mostrou-se indeciso e consultou o seu colega. Os dois não poderiam abandonar o posto, mas não queria deixar de atender aquele homem.

- O Sr. fique aqui que eu vou ver o que posso fazer.

Disse com voz de autoridade. Entrou no prédio e dirigiu-se à secretária do Secretário.

- Há um homem aí fora procurando pelo Sr. Deus. Eu acho que ele quer falar com o Governador, já que procurou pelo Sr. Deus.

- Deve ser mais um atrás de auxilio moradia. Como ele está? Maltrapilho?

- Não senhora. Roupas simples, mas parece limpinhas.

- Está bem. Vou falar com o Secretário.

Dirigindo-se a um imponente gabinete.

- Sr. Secretário, há um cidadão aí fora procurando pelo Sr. Deus. Creio que ele queira se inscrever em algum programa social.

- Está agendado? Se não estiver, despacha. Não vou atender ninguém, nem interromper o Sr. Governador com uma besteira dessa.

- Mas Senhor. O homem é eleitor. Apresentou seus documentos e não se esqueça que é ano de eleições. Podemos perder esse voto.

Não sem antes relutar.

- Está bem. Traga-o até aqui.

Com um largo sorriso entrou no palácio. Mal conseguia andar. As pernas cambaleavam. Os sapatos ora deslizavam ora afundavam nos macios tapetes. As paredes decoradas com pinturas e fotos. Os olhos reviravam diante de tanta pompa e de tanta beleza. O digníssimo secretario nem perguntou o que ele queria.

- O Senhor está inscrito em algum programa social? O governador tem todo o interesse em atender aos mais necessitados. Não se esqueça disso nas próximas eleições. Agora vá que estou muito ocupado.

Retirou-se frustrado. Não sabia se tinha falado com o Sr. Deus. Não havia pedido nada. Nem sequer anotaram seu nome e endereço.

- Não. Não é aqui que o Sr. Deus mora. Ele não teria me tratado dessa maneira.

Não se lembra de quanto mais ainda caminhou. Pensamentos desnorteados pela fome e pela sede. Os pés doíam dentro do roto sapato. O repicar dos sinos de uma velha igreja conclamava os fiéis à missa. Há muito não os ouvia. Decidiu entrar. Poderia abrigar-se do sol e descansar um pouco. Sentou-se em um dos últimos bancos. As pessoas entravam compungidas, principalmente as mulheres com seus enormes rosários. O padre começou sua prédica:

- meus irmãos, estamos na casa de Deus, lugar onde encontramos solução para os nossos problemas e perdão para os nossos pecados.

Não entendeu bem essa parte do “perdão dos pecados”, mas as palavras de que aquela era a casa de Deus lhe renovou as esperanças. Finalmente tinha encontrado o lugar onde o Sr. Deus morava. Ficou em silêncio toda a celebração. Quando teve início a distribuição das hóstias, foi à frente e recebeu a sua. Quando o padre tomou o cálice, disse para si mesmo: ah! se eu pudesse tomar pelo menos um golinho pra refrescar a garganta. Terminada a missa, dirigiu-se ao padre:

- Padre, eu queria falar com o Sr. Deus. O Senhor disse que essa era a Sua casa. Disseram-me que Ele poderia resolver o meu problema. Na verdade estou precisando de um emprego.

- Sim filho, essa é a casa de Deus, mas agora não posso atende-lo. Tenho que fechar a igreja. Já estou atrasado para uma reunião ecumênica.

Quase que empurrando o coitado para fora.

- Ecu o que padre?

Agora a frustração e o desânimo lhe abateram. Onde mais procurar o Sr. Deus se até mesmo na casa onde ele mora não deixaram falar com Ele? Já não sabia para onde os seus pés o levavam. Continuou vagando. A sede aumentou. Muita sede. De longe avistou uma pequena lanchonete. Aproximou-se e pediu água a um homem que parecia ser o dono do estabelecimento e que tinha uma agradável aparência.

- poderia arranjar um copo d’água, por favor ”?

- Pois não. Com gás ou sem gás?

- Não. Pode ser da torneira mesmo.

Pelo olhar, notou que o homem percebera que estava sem dinheiro.

- Tome uma mineral. Não é bom tomar água da torneira. Nunca se sabe se está realmente limpa. Onde mora? Que faz por essas bandas?

Parecia querer conversar. Não teve coragem de dizer onde morava. Também não queria mentir. Balbuciou alguma coisa. O homem prosseguiu:

- Está empregado? Olha, as aulas daquele colégio vão recomeçar e o movimento da lanchonete vai aumentar muito. Estou sozinho e não vou dar conta. Não gostaria de trabalhar comigo? Não posso pagar muito. Só o salário. Se quiser se alojar aqui, há um quarto lá atrás. É pequeno mas bastante aconchegante. Gostei de você e percebi que é um homem de bem. E aí, que me diz?

Pensou: e a procura do Senhor Deus, como ficaria? Mas não poderia recusar uma oferta dessa. Decidiu que deixaria a busca para uma outra ocasião.

- Está bem, eu aceito. Aqui estão os meus documentos. O Sr. não vai se arrepender. Mas, nem sei a sua “graça”, o seu nome?

- DEUS, JOÃO DE DEUS.