A nova Lolita ou Notas sobre um novo escândalo.

Sim. Devo ter alguma doença Doutor. Sei que meu caso está perdido senhor, mas acredito que devesse ouvir minha história. Pode parecer um tanto insólito mas ninguém manda no coração. Você... Me desculpe... O senhor deve saber disso também... O coração é como um animal, talvez seja como um viralata que porta-se dócil e chegamos até a esquecer da existência dele, mas se em um breve momento deixamos por um insensato descuido o portão aberto... Ah! O animal cresce e relembrando sua descendência lupina corre desvairado e escapole pelo portão e daí, meu senhor, é tarde. Podemos até correr desatinados atrás dele, mas uma vez liberto... Ele não tem freio e sai em busca do que quer. Isso aconteceu comigo.

Se me arrependo? Não! Não me arrependo senhor, devia me arrepender? Os moralistas dirão que sim e esbravejarão que sou um perigo a sociedade. Mas repito, o que ocorreu não ocorrerá mais. Será impossível apaixonar-me novamente, ainda mais depois de tão terrível sorte.

Como tudo começou? Começou como todas as histórias de amor começam, de uma simples casualidade, do somatório caótico e inexplicável de uma série de eventos que isolados não têm significado algum, porém dentro do contexto tornam-se fortes, inquebrantáveis e ardilosamente perigosos. Pois então... Eu poderia estar em qualquer outra sala, eu poderia ter me dedicado a qualquer profissão, só que o destino é cego, todos nós sabemos disso e este ser nos empurra. Achamos erroneamente que controlamos nossas vidas. Ledo engano! A vida não está ai para ser controlada, muito pelo contrário é ela que nos possui. Somos personagens de um gigantesco teatro de fantoches e uns creem que o roteirista de tal peça é deus, outros creem nos deuses, ainda há alguns que preferem chamar isso de destino. Chame do que for meu amigo... Posso chamar o senhor de amigo? Me lembro ainda do primeiro dia que tomei conta da existência dela. Naquele mar de alunos. Saiba, que as salas de aula são organismos vivos, são um grupo de individualidades que tornam-se um temível e único ser. Mas naquele amalgama medonho de pessoas, em um paradoxal dia: o melhor e ao mesmo tempo o dia mais maldito de minha vida ela me perguntou algo. Não me lembro o que eu explicava. A gramática é inócua diante do amor. Sim! Eu amei-a naquele instante. Lembro-me ainda de seu alvo braço estendido, sua axila virgem de pelos, limpa, branca e pura. Ajustei os óculos e dei a medíocre permissão para que ela falasse. Repito - medíocre permissão - pois ante tamanha pureza personificada não havia justiça em minha condição de superioridade. Nesse instante... Ela piscou e me deparei com seus olhos. Eram uns olhos verdes, não completamente verdes, mas rajados, isso mesmo, olhos rajados como os de um gatinho desses que encontramos saltitando por nossos telhados. Perguntou-me então se eu gostava de poemas. Desisti da aula, não existiam mais outras pessoas naquela sala. Só eu e ela. Eu e aqueles braços alvos. Eu e aqueles olhos verdes rajados. Eu e aqueles dentes ainda tortos, esperando pelos indecentes aparelhos ortodônticos que mutilariam aquela imperfeição tão pueril e bela. Explanei incontáveis minutos sobre poemas, poetas e rimas. Falei sobre o amor, sobre a lua e sobre a sensibilidade daqueles que tem o dom de escrever.

Sabe o que eu queria? Queria rasgar-me em erudição e tornar-me o herói de sua meninice. Queria ser o professor admirado e em poucos minutos tornar-me o inesquecível professor, aquele que carregamos com carinho na lembrança. Foi quando a trombeta do inferno soou, ou melhor, o sinal e daquele dia não me lembro mais de nada.

Como deu-se o resto? A principio tinha para mim que ela era só a menina dos meus olhos. A aluna queridinha a qual damos as melhores notas e concessões únicas de idas ao banheiro ou prazos maiores para trabalhos. Mas o que no começo era só uma massa rala de amor docente, foi se condensando, tomando consistência, fermentando, crescendo. E assim ela foi se tornando um ser feérico, uma ninfa, uma bela, altiva e poderosa garça branca que com suas patas compridas e finas tinha que forçosamente caminhar por aquele torpe, imundo e podre lago de outros alunos. Fui sentindo um desejo irreparável de excluí-la daquela turba. Passei a odiar seus colegas de classe. Cheguei ao cúmulo de negativar o aluno que tocava seus cabelos durante certa aula.

Então o senhor ri, quando comparo ela a uma pura garça? Para mim isso era ela. E eu maluco de um desejo estranho queria possuí-la. Não sexualmente, queria ela somente para mim. Como o passarinheiro que consegue ilegalmente capturar um belo e cantador pássaro raro, simplesmente no desejo de excluí-lo da natureza, engaiolá-lo e tornar-se o exclusivo dono, ouvindo todas as auroras o singular cantar do pássaro. Nesse ímpeto segui-a de carro e quando percebi convidei que entrasse no meu carro e no momento em que ela pousou seu corpo no banco do meu carro, sorriu-me, piscou-me os olhos rajados eu já não podia responder por mim. Com a tranca elétrica do carro travei-a na gaiola de meu universo e corri, meu amigo. Corri da escola, das responsabilidades, da minha mulher e filho que me acorrentavam em uma vida suja de mentiras e falsidades, corri como um corcel indomável, saltei as barreiras das convenções sociais, enquanto ela assustada se agarrava a rosácea mochila, temerosa do que acontecia. E assim eu corri doutor, corri desesperadamente por estradas vicinais até que o combustível de meu carro acabou. Não me recordo do que ela gritava, talvez me perguntasse o que acontecia, talvez chorasse, talvez de temor estivesse em silêncio. O que sei, é que sai do carro tranquei-a lá dentro encostei-me na cerca ao lado da estrada e liguei para a polícia. Prenda-me doutor! Por favor prenda-me! Quero terminar minha vida separado de tanta pureza! Prenda-me doutor, exclua-me de um mundo onde não posso possuí-la, de um mundo onde ela não me ame. Tranque-me na solitária mais escura, dê-me pão e água. Meu único luxo, doutor, é pedir-lhe um livro... Creio que saiba qual...

Luís Figueiredo
Enviado por Luís Figueiredo em 29/03/2011
Código do texto: T2878503
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