Começou a chover…

A Central há muito que calou o seu grito de fera ferida, mas ao contrário da fera que depois de morta já não faz mais mal, a Central, embora já tenham passados anos que toda a gente quase esqueceu, a Central continua a fazer mal, ainda mais mal do que na altura em que Tudo aconteceu…

Um silêncio venenoso, abateu-se desde então sobre nós.

Um silêncio que está no ar, que está na água, que está em tudo, que está em nós…

Quem se lembra do colapso já morreu há muito, quem o viveu em directo pela Grande Rede, há gerações que já não está entre nós, mas a Central continua, no seu veneno invisível, mortalmente invisível…

Desde então que tememos a natureza, porque é a manifestação da natureza que nos lembra que a Central sempre estará entre nós, mesmo que esteja a enorme distância, como é o nosso caso.

Quando a natureza se manifesta é impossível não a recordar…

Quando nascem crias de animais com as mais diversas deformações, nós recordamos a Central, quando nascem bebés humanos com um aspecto muito pouco humano, nós recordamos a Central, quando nascem da terra infectada belos alimentos, são os sinais de radioactividade que nos lembram que esses alimentos são mortais…

Quando anoitece e os focos intensos que iluminam a Central, de forma a que ninguém se aproxime dela descuidadamente, por uma eventual desorientação originada pela ausência da luz natural, nós temos mesmo que recordar a Central…

Quando a esperança média de vida declinou e vivemos menos e com mais doenças do que os nossos antepassados nós recordamos a Central…

Palavras estranhas, expressões que deveriam ser estranhas como “fusão do núcleo” ficaram para a eternidade a recordar-nos que a nossa vida algo curta se passou a dever a um enorme erro da mesma ciência que, ironia nas ironias, nasceu para nos prolongar essa mesma vida…

E mesmo que não queiramos ver, mesmo que não queiramos sentir, mesmo que atribuamos as doenças que nos minam prematuramente a outra coisa qualquer que não a um conjunto de átomos que enlouqueceram devido à louca manipulação humana, quando começa a chover, é impossível não recordar…

A chuva não é como aquela que vemos nas fotografias de livros antigos ou em filmes também antigos.

A nossa chuva é negra e é ácida.

A maior herança dos nossos antepassados, que na fome energética demente que tomou conta deles, deitaram mão a todos os recursos possíveis e imaginários, mesmo os mais desaconselhados, dando origem a uma serie de cataclismos que minaram o planeta humano.

O colapso da Central foi apenas mais um…Gigantesco, avassalador, mas apenas mais um desastre…

Por isso quando começa a chover, a morte é literal e não apenas figurada…

Por isso quando começa a chover toda a gente se recolhe para os abrigos, e quem apenas se salpica tem de imediato ir a um centro especial ser desinfectado e logo depois esterilizado, e se demasiado exposto de imediato internado e afastado de tudo e de todos, destinado a morrer isolado no local mais recôndito e esquecido do hospital da zona.

Por isso todos tememos a chuva, por isso trememos quando se anuncia chuva, por isso sabemos que quando acaba de chover alguém morreu ou vai morrer em breve, por isso não é apenas uma frase feita de rotinas banais quando alguém diz

Começou a chover…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 26/03/2011
Código do texto: T2872565
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