A Pira: Apocalipse: Gotterdämmerung

à Richard Wagner

Eu vou contar a Zumira, voltando ela desta Catharsis; imagina ela me escutasse, eu diria que no Longe, no Lá-longe, distante infinito, te digo, haveria uma Pira tão grande e tão estrondosa como queimasse uma montanha de carvão, ossos, carne, sangue, palavras; aproxima-te do lago, Zumira; está ao meu lado agora, o Lago ilumina um pouco melhor, pois é uma espécie de clareira na mata. Zumira está ao meu lado, mas verá ela como eu vejo neste momento o fogo lambendo o céu como num beijo indecoroso, verá Zumira, como eu, tudo isso? Um corpo mergulhado morto ao fogo, afogado na morte e no mundo, desaparecendo no ar como fumo; um outro corpo grande ou veloz demais passou, Zumiira, sentiste o vento esfregar a pele – sim, ela sentiu, porque eu percebo sua pele bem arrepiadinha, como quando fazíamos brincar nossas nudezas faz pouco tempo, um tanto depois do Sol se pôr hoje; sim, Zumira, ela viu como a pele está arrepiada e se envergonha, ora por quê? E os bicos dos seios, sob o vestido pobre de algodão, maltratado, os mamilos pontudos à sombra do pequeno casaco de pele – o único que consegui curtir e tratar direito – é preciso, Zumira, te conhecer bem para saber quando teus mamilos estão pontudos, porque insistes em escondê-los. Vejamos...:a Lua parece lançada no horror da brasa, algo brilha mais esta noite, a Terra toda balança, sim, a Terra toda balança, bem depois daquele vento cortante que passou, depois da pira eterna queimando longe longe, compreendes? Eu tenho medo, sim, eu tenho muito medo de que algo aconteça, de que o Céu tombe, ou pior, que a Terra se eleve desintegrada, feito um pó fino; eu tenho medo que Zumira perceba o meu tremer, eu tenho medo de perder Zumira nos golfos vazios do universo, por isso eu enciúmo as estrelas.

Existe algum pai eterno que a pira está a queimar, ou são milhares de corpos, mãos, maxilares, cabelos, pernas, volatilizando num vapor imundo e insensato; e olhos, e olhos, rojados entre pedras e feixes de madeira, são observadores privilegiados do funeral; perguntei à Zumira, contudo ela não sabe nada a pobre, sua capacidade de admirar o lago é realmente surpreendente e lastimável. Acordará Zumira desta espécie de transis beato? Zumira! Quem lhe dirá – ora, serei eu – à Zumira que o mundo parece mergulhar num abismo de chamas, que se uma árvore sustentasse Céu e Terra e ordenasse os rios, ora, se isso fosse verdade, agora só uma pira os sustentaria, castigando os deuses em sua moradia, castigando os humanos em sua prisão, trancando ambos num presente de luz halucinada?! Adivinhei a escuridão.

Zumira me abandonará, aproxima-te mais do lago, vê-nos a nós uns, vê-nos dentro da água, salvos deste final atroz, afogados e asfixiados, nós outros; Zumira, aproxima-te maiormente do lago, Zumira, ela me conta sobre sua avó guarani, descamando peixes, limpando entranhas, cozinhando-os bem com uma raiz forte, comia-se quente, quente, Zumira, mas quente assim tal este Céu deglutindo a Lua, Jacy a mãe das frutas, este Céu quente aurora mórbida, matina lúgubre em que um planeta morrerá? Ninguém quer abrir a boca agora, todos só têem olhos para a transformação no Longe; uma pira, num herói jovem queimadouro, um rei futuro, um sábio imperador; um vento forte, varrendo a floresta, desmatando tudo em torno do lago, uma voz ensandecida gritante, no Meio do Nada eternamente longe, no Abismo da distância, uma voz absorvida no crepitar perturbador da floresta, que fala ora a língua do Fogo, não cessa de falar, folhas se alçam imitando vapores, a Lua vibra entre nuvens imitando a fumaça do Longe.

Ninguém me está a contar isso, tudo isso morre agora, tudo isso meus olhos abolem calmamente cometendo em plena consciência. O vento, Zumira, lembras de que te estive a falar sobre o vento? Pois, ele é um furacão flamejante, espada de gigantes, há como um concílio de furacões e meu coração não concebe a idéia completa deste teu mirar incessantemente este maldito Lago. Um Lago. A superfície de um lago assumida, esta criança minha que trazes à barriga, esta criança minha nadando dentro da água sem mover o Nada, no Profundo desta superfície, um herói banido do mundo antes do nascimento, nascituro e redimido já. Eu vou te contar agora; Zumira está ao meu lado e mergulha ao lago como quem me pede a morte ao invés de assumir o Fim impecável; Zumira, teu Martírio não me engana, é mais fácil morrer asfixiada neste mundo do que levantar os olhos e ver o Céu em chamas, qual um gás estrelado, os furacões abrindo um corredor de lado a lado, um cavalo de fumaça carregante a esposa da pira e os despojos de todos os heróis do mundo – ou melhor – do Herói e da Vitória, tudo isso rojado à Memória incerta deste lago inerme. Tudo é clareira. Tudo é clareira então. Zumira, tu me pediste uma explicação sobre a paz do lago, eu não posso observar o lago, é atroz, ele é o pior espelho deste desastre além, ele é pior, sim, porque ele tem Vida, ele é um escudo e me defende do meu Resignar, como posso contar-lhe tudo isso, como posso dizer-lhe tudo isso? Bem, aparentemente existe um jato de sangue atravessando o ar, a Lua era só uma morada provisória do Terror, a luta entre os gigantes continua, dois furacões tombaram, duas grandes nuvens violetas precipitam borboletas e outros gases maléficos; um furacão parece engolir a Lua, que o Lago me proteja, me proteja ô Lago; observa dentro do lago mais uma vez meu Amor por este mundo, Zumira, por favor, e diz se não vale a pena viver; não, não é um vulcão aquilo, não pode ser, é o magma fundido spirrando pedra e petrifazendo, ninguém quer admitir... é um vulcão, sim, porém distante, deitado no Longe da pira, ai Lago, ele é a Pira ora, os furacões se inclinam puxados, consumidos, sugados, inspirados, ganham dimensão pois tudo está deserto, não existem mais florestas e o ar está cheio de um gás nocivo, ferindo meus pulmões. Cuspo sangue dentro do Lago, peço perdão, Zumira; tudo está cheio de um pó, como explodissem uma bomba ao meu lado, no Longe, no Remoto, a Terra continua a tremer, o vento continua a passar e a fumaça continua a carregar a esposa da Pira, uma voz demanda todo o Poder, os furacões defrente combatem, restam quatro, uma nuvem violeta cobre o vulcão agora, caem cristais queimando minha pele e congelando Zumira dentro do Lago; o vulcão abre a boca e eu vejo como longe cidades, milhares delas, desaparecem, formando um Anel de destroços, de ruínas, os rios estão secos, só a Morte sobrevive a este festival, a Morte ela mesma está atônita, a Morte ela mesma perdeu a cor das faces e tenta recolher o Anel, elevá-lo do pó cobrindo a Terra; uma voz demanda todo o Poder, esganiçada e grave, depois cansada e bramante, um furacão já derrubou outro, a nuvem por sua vez enterrou ambos numa chuva sulfúrica, fumarenta, ciano contrasta com o magma que a Pira jeta ao ar, numa grande luz voadora, que se petrifica e caindo destrói mais do que o fogo antecedente, Zumira não se admira, ela simplesmente não assume, ela está dentro do Lago ainda, leda e simplória e congelada, ela quer beijar minhas faces sujas de pó, queimadas pelos cristais da nuvem mais poderosa cobrinte continentes; enfim, ela quer me beijar as faces, contudo ela congelou-se ao meio do Lago, efeito desses cristais, ela me chama duns braços azulados, pálidos, ela sorri e não vê, ela só me vê, é absurdo! Ela me chama, eu quero contar a ela como a Terra treme-lhe atrás, como o Céu se funde atrás, como o magma criou ruínas de pedra. Zumira, o Lago não nos protegerá, o Lago morre, há agora um desespero entre os furacões, que se ferem e se misturam sob a chuva azul terrível, borboletas roxas pousam em tua fronte, em tua fronte, quem dirá a Zumira que a esperança, esta gravidez imprevista dentro de um Lago congelado, quem lhe dirá eis o Fim? Eu? Haverá uma nova Terra depois dessa?

O Vulcão respira no Longe, no Lálonge, a Vitória conseguida explica a Luta e o Passeio da Morte, o Anel se levanta em meio ao Pó; e de repente a Lua – esta Jacy esquecida e há pouco engolida por um Jaguar de fogo – súbito é a Lua que renasce da Terra, um Anel de pedra flamejante alçado pelo último furacão, um Anel mortiço, sem luz própria, o qual tem vários corpos pendurados, fusionados, milhares, sorrisos desesperados, braços contorcidos, aromas e perfumes, incensos, Zumira, a nova Lua passa pelo ar atraindo a grande nuvem azul, desaparece a chuva, sobram somente as borboletas roxas em tua fronte, Zumira, o resto é um deserto imcompreensível – e tu pareces sussurrar-me algo. Contarei tudo a Zumira se ela parar de sussurrar; a Voz tresloucada se agarra às nuvens e à nova Lua, é agora cavernosa e gutural, é abundante e caudalosa e demanda o Poder, balançando as pernas no Céu, desastrosa. Nem a Morte é capaz de entender e cala, Zumira sussurra sem cessar. Estamos surdos ou vivemos dentro de um Grito, passa o Fogo e passa este Fogo dentro, estou desguarnecido porque ecoamos um Urro mineral, um Urro a nós não pertencente, um Urro que não é uma Palavra e me incomoda ser o Meio a Circulação Disso irracional. Se se aproximasse ela eu apalpava sua nuca, assim entrando entre os cabelos para aí sentir os finíssimos fiozinhos, resvalando aos poucos para sentir sua omoplata lisa e suas costas macias, subindo pelo trapézio dessa pobre alma até chegar ao Onde.

um Bico alarga

senti-lo Fim Mamilo

(verão que) o Passad’ mo roubava

(insão)(insaciável)

O Pensamento arrepia, chamo chamo, mas minha voz soooa um tanto degradada, pelas cordas vocais decadentes, algo secou minha língua meus lábios, o Lago se presentava tranqüilo – contudo moveu-se, um corpo para aí se lançou mas a leveza escapa – o Lago está iluminado duma maneira rara e horrorosa, Zumira bóia de bruços, a curva de sua coluna tem finalmente um brilho violáceo – ou fôra uma borboleta anunciando a Revolução no Lago.

Borb’leta primeira:

o’Agora nascido ou foi

uma Primavera?

O Urro desapareceu, meus cabelos arrancados e meus olhos requentaram-se – eram já uma criatura do meu Porvir – vermes absurdos – explodiram – , já ensurdecido, sem fala, só me resta tentar recuperar o corpo afogado de Zumira para desenhar lentamente em seu dorso impassível, letra por letra, com a ponta dos meus dedos, toda a Estória dessa dourada Era.

Danilo da Costa Leite
Enviado por Danilo da Costa Leite em 26/03/2011
Código do texto: T2871794
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