A minha última carta de amor…
“Child drinking dirty water from the riverbank
Soldier brings oranges, he got out from a tank”
Estamos cercados, de forma literal e mental.
Mesmo as modernas comunicações, que permitiram que uma revolução supra-nacional invadisse a mente e depois os corpos dos povos do deserto oprimidos nos foram vedadas. A instalação de aparelhagem cortou-nos o cordão umbilical comunicacional que nos permitia saber como ia o mundo, e o mundo saber como nos íamos…
Por isso é através de uma das mais antigas e arcaicas formas de comunicação que te mando esta mensagem: no pedaço de mar ainda livre lançarei a mensagem dentro de uma velha garrafa de um velho vinho, esgotado tal como o resto dos mantimentos, lançada a esse mar, na dúbia esperança que a encontres, muito tempo depois de ter desaparecido. Na sorte aleatória das correntes, ela pode ficar a navegar durante uma eternidade, pelo que se calhar serão os teus descendentes que a irão descobrir…
Estamos cercados, estamos isolados, estamos condenados, e no entanto tudo era diferente quando partimos…: politicamente motivados por uma missão humanitária que deveria devolver o poder a alguém que o perdera por um acumular de disparates que fizeram o povo invadir o seu palácio e o destituir, politicamente motivados porque nos disseram que esse povo estava errado, que tinha sido manipulado, convenceram-nos que seria uma missão rápida e de sucesso garantido…
Depois uma missão que deveria ser de libertação e que deveria durar apenas horas, transformou-se em ocupação e prolongou-se por dias, depois semanas, e finalmente meses, o tempo necessário para a acharem um erro, o tempo necessário para esse povo ganhar a simpatia do mundo, para o mundo abrir os seus paióis ao antigo inimigo, sendo que num “entretanto” incómodo lá estávamos nós…cercados num promontório à beira do mar.
Qualquer esforço para nos resgatar seria considerada uma ingerência externa numa nação soberana ( o que não deixa de ser estranho porque a nossa missão era por si outra “ingerência externa numa nação soberana” …) e assim em nome de boas relações diplomáticas recentes e em futuros contratos de exploração das riquezas dessa nação, nos deixaram abandonados e cercados. Juntamente com alguma população que caiu na asneira crassa e mortal de nos apoiar…E como a nossa agonia durava mais do que o previsto, e porque os nossos testemunhos poderiam incomodar demasiada gente, forneceram o tal equipamento bloqueador de comunicações e disseram no nosso país que nos tinham morto, assunto encerrado à espera dos corpos para anónimos funerais militares com todas as honras mas esquecidos algures no meio dessa nação…
Enquanto te escrevo esta carta olho para algumas crianças que brincam sobre um tanque destruído, que bebem agua inquinada num charco ao lado da besta de metal abatida, o resto da água que há, e que as vai matar antes da fome ou dos obuses que em breve se abaterão sobre as nossas posições, colocando um ponto final nesta triste história…
Dizer que sinto a tua falta é retórico, dizer que queria voltar para Ti é retórico, dizer que te queria ter apenas mais uma vez é retórico, dizer que estou arrependido de te ter deixado para entrar nesta aventura é retórico, dizer que estou farto disto e que isto me serviu de lição é retórico…Por isso não o digo, sinto tal apenas, mas como certos sentires não se sentem numa carta, tu nunca irás saber como me sinto…
E por isso não digo mais nada…limito-me a acabar esta carta, depois irei fumar um cigarro, o último e esperar pela ofensiva que quero breve para abreviar de uma vez por todas isto que dura há demasiado tempo…
Poderia chamar uma data de coisas a estas linhas, porque elas podem possuir diferentes leituras, dependendo do prisma com que forem lidas, ou da pessoa que as descobrir, mas como quero que seja apenas uma coisa, vou-lhe chamar “Carta de Amor”, colocar o meu nome o teu e a nossa morada, na esperança estúpida que alguém descubra a mensagem e a leve até ti…
Porque se ao fim ao cabo na vida tudo acaba por se resumir ao amor ou à falta dele, o que lerás, só pode ser mesmo
A minha última carta de amor…