O INSTANTE DA BALA
O instante da bala
A luz vermelha do semáforo está acesa. Você sabe que não deve parar o carro a esta hora da noite, mas será apenas por alguns instantes, e você gosta de cumprir as leis, mesmo as do trânsito.
Você não sabe como mas, de repente, lembra-se do sangue vindo da sua mãe, pelo cordão umbilical, alimentando-o. Você lembra dos primeiros dentes rasgando sua gengiva, coçando, doendo e lhe fazendo morder panos e borrachas, até sangrar de prazer. Você lembra da primeira vez que sentiu o gosto do sangue misturado ao leite materno, o bico do seio gostoso, gosto de Terra Prometida.
É bom o cheiro do seu creme de barbear que você usa. É o mesmo que era usado por seu pai. Ele sempre deixava ao alcance das suas mãos o aparelho de barbear com lâminas Gilette. Um dia, aos cinco anos de idade, você faz a sua barba pela primeira vez... e ela era vermelha.
No prédio ao lado o apartamento da sexagenária que ainda não sabe usar direito o recém-lançado fogão a gás, pega fogo. Emocionante ver o lindo carro do Corpo de Bombeiros com suas luzes coloridas piscando, a sirene tocando. Ágeis soldados abrindo hidrantes, diluindo as cores ardentes das labaredas.
Você roubava frutas nos quintais vizinhos. Cortava as mãos nos cacos de vidro no alto dos muros, lapiava-se nos arames farpados. Furava os pés nos pregos largados no mato, fugindo dos cães. Era a pressa. Goiabas, mangas, laranjas. Frutas furtadas cortadas com facas cegas e enferrujadas, que feriam também as mãos.
Você perdeu unhas e cabeças de dedos nas peladas jogadas no barro, no cascalho, nos paralelepípedos. As marcas do seu sangue tingindo a bola, a bola esmagando e fazendo sangrar o seu nariz.
Você passava as férias escolares no interior e ainda pergunta-se como continua comendo carne, após ter presenciado tantos animais serem brutalmente assassinados.
As galinhas tendo seus pescoços torcidos, friamente; os porcos, amarrados, perfurados no pescoço, largados, entre grunhidos, à morte lenta e dolorosa; a pancada firme e seca do machado no nariz do boi, fazendo estalar seu ossos; os corpos dos carneiros esfolados, pendurados nos caibros do casebre, sempre o chão sorvendo o sangue imolado. Depois, na cidade, sua mãe levava-o à granja para comprar a ave abatida na hora; você lembra do cheiro insuportável das galinhas e dela pedindo ao vendedor: “me dá o sangue que eu vou fazer um sarapatel”.
As luzes vermelhas nas portas dos casebres das mulheres-damas, de sorrisos e pernas abertas no baixo meretrício. Vitrolas de fichas, cortinas de contas. Nos quartos das putas, penteadeiras enfeitadas com frascos de águas de (mau) cheiro e jarros de plástico, azuis, com flores Angélica. Ao canto, uma bacia com água para o enxágüe, papel higiênico escuro e grosseiro. Você lembra das músicas de Odair José e Adilson Ramos. “Por que não paras, relógio?”
Você não sabe porque, mas neste momento lembra-se de todas as mulheres que comeu, principalmente das menstruadas. Suor, saliva, sêmen e sangue se misturado num festim profano. As fronhas, toalhas e lençóis brancos dos motéis definitivamente maculados. Seu pênis rubro, suas mãos com sabor de Vitamina B.
O sangue da buceta virgem de Rosa manchando o estofamento do seu carro. Ela ficou tão feliz quando você lhe deu aquele buquê de rosas vermelhas! O mesmo sangue que estava naquela placenta, da sua filha. Você olhando através do vidro, na maternidade, vendo-a nascer, suas pernas tremendo. Suas pernas tremeram quando resolveram – você e seus colegas – dar uma surra no professor que reprovara metade da turma. Seu corpo inteiro tremeu quando seu pai morreu nos seus braços, cuspindo o pulmão em golfadas de sangue.
Você vê, pelo retrovisor, que um fio líquido, quente, vermelho, está escorrendo na sua cabeça. Você lembra, vagamente, de ter ouvido um zunido. Depois, tudo ficou escuro.