.:|Nove|Segundos|:.
Um pequeno claro abriu-se, como um feixe, no espaço entre minhas pálpebras. Meus cílios pareciam grudados, eu não conseguia entender por que razão. Meu olho esquerdo ainda não respondia à tentativa de abri-lo, e a curiosidade de alguém que desperta de um sono confuso em ver o que o cerca certamente me fez tentar mover a cabeça para algum lado. Esforço inútil. Então, a busca pelo comando de qualquer outra parte de meu corpo foi um comportamento automático, e então, senti que meus braços e pernas não respondiam.
Inicialmente, curiosidade. Logo então, a angustiante pergunta inevitável, seguida de uma desesperadora certeza: Não estou na minha cama. E não estava dormindo. A indescritível dor alcançou-me como uma marreta alcança o alvo, certeira, e ao mesmo tempo, espalhada por tudo em mim, ao ponto de não poder ser identificada, nem por onde começava, nem onde acabava.
A segunda saraiva, que não tardou, foi a memória recente sendo desordenadamente recuperada. Agora os sons começavam a se formar, ainda misturados e confusos, variavam de distância, iam, vinham, calavam. Gritavam e eram abafados pela sensação de um exército marchando dentro de minha cabeça. Inevitavelmente percebi que era minha pulsação, e estava lenta e forte. Um pânico contido, engarrafado como dentro de uma ampola inviolável, se fez presente, e recalcado imediatamente. Quando tentei respirar, percebi que estava limitado pela presença física de algo me comprimindo as costelas, pelas costas. Tentei refletir se estaria dentro ou fora de mim. Concluí que era fora, e senti certo alívio. Agora, eu notava também o cheiro do carro, ainda novo. Tentei imaginar como estaria por fora nesta hora. E se o veria novamente, belo e reluzente como ainda podia lembrar-me dele.
Os sons começaram a fazer sentido, eram urbanos, eram curiosos. Eram apressados como a alma humana. Eram urgentes como eu há pouco me sentia. E agora, estava eu ali, parado, imobilizado por uma condição que ainda desconhecia, à margem do tempo que seguia normalmente para o restante dos mortais que me cercavam. A luz foi dissipando-se, e trazendo imagens. Meu olho direito conseguiu espiar por entre os cílios embebidos no que eu agora sabia tratar-se de um pouco – esperava eu que fosse pouco – de sangue. As condições do olho esquerdo, eu ainda ignorava. Apenas percebi que não respondia. Sabia que estava vivo, ou ao menos desconfiava disso, já que a morte não deveria doer tanto assim. E tentei consolar-me com a dor que sentia, apegado a ela como um indício de minha persistência para ficar vivo.
Na memória, a certeza de que poucos instantes, talvez poucos pares de minutos atrás, tudo era diferente. Eu podia mover-me, e decidir minha direção. E foi numa dessas escolhas que me vi entre estar mais cedo onde queria, ou jamais chegar. Na verdade, dentre tantas outras opções, essas eram as mais prováveis, e em semelhantes proporções de probabilidade. Ainda assim, insisti nisso que chamamos, de maneira desprezível, simplesmente de “risco”.
Agora podia ver, embora não entendendo nada, um pouco do que me cercava. Tive impressão de estar de cabeça para baixo, e concluí que estava ainda dentro do carro capotado. Não reconhecia a estrutura por dentro, e por certo, não imaginaria que chocar-me com o que quer que eu tivesse me chocado, provavelmente um muro, a última coisa de que me lembrava antes dela aparecer do nada na minha frente, pudesse destruir tanto um carro a uma velocidade tão baixa. Mal havia passado dos 80 km/h. “Ah, esses carros de hoje”, pensei, “mal suportam um encostão”. Se pudesse ter lembrado que o corpo humano é tão mais frágil que isso, talvez o receio me tivesse preservado mais.
Perto de minha cabeça, entre pedaços do que notei terem sido parte de meu rádio, vi um pequeno pendrive. De imediato, me lembrei de seu conteúdo, e comecei, estranhamente, a lembrar-me do quanto de história minha havia dentro dele. As músicas que adorava ouvir repetidamente no player do carro, e que vez ou outra entravam em conflito com outros arquivos de fotos... “as fotos”, pensei. “As fotos com ela. Com eles. Meus amigos, minha amada, e aquelas que fizemos juntos de um mundo que enxergávamos secretamente escondido pelos cantos esquecidos da cidade.”
Pela primeira vez, senti desespero, e ao mover o olhar para os lados, vi os coturnos pretos de socorristas de resgate, logo ao lado de minha cabeça. Tive muito medo de nunca mais ver meu pendrive, e perder parte de minha memória dentro dele. Tentei articular um pedido de ajuda para guardá-lo, havia tanto nele que falava sobre mim, e sobre meus amores na vida... Balbuciei, e não senti minha voz sair. Ainda não sentia os braços para tentar pegá-lo. Apenas dor, que não conseguia identificar de onde vinha. E vi o sangue começar a alcançá-lo. Era o teto do carro. Eu, virado, meio suspenso, meio comprimido. Meio consciente, meio impotente. Meio vivo, meio... Tentando permanecer vivo.
O desespero quase fugiu da garrafa, e agarrei-me à cena que me levou àquilo. Eu tinha pressa, e ultrapassava impaciente pela direita, quando a vi. Ela tinha olhos lindos, e trigueiros como de qualquer criança passeando pela mão da mãe. Ficam sorridentes e peraltas quando se soltam de sua mão, e desafiam o mundo com passos independentes e rápidos. Rápidos o bastante para passar frente ao carro de minha esquerda, invisível para mim, pela estatura. Mas não rápido o bastante para passar pela frente do meu, que acelerava o suficiente para fazer a passagem pela pista à direita, já que estava vazia. Ou melhor, parecia vazia, pois em breve, seria tomada pela enorme presença de uma pequena criança loura, não sabia ainda se menino ou menina.
Ali, entre o pavor de perder a memória contida no pendrive, a tentativa de balbuciar palavras, e a indiferença à enorme quantidade de sangue que se espalhava pelo teto do carro, veio a desesperada tentativa de lembrar do som do impacto do carro na criança. Não sabia se tinha ou não conseguido desviar completamente. Não sabia se tinha mesmo conseguido corrigir precariamente a união entre meus 5 segundos de imprudência na vida, com os 2 segundos de distração da mãe, misturados ao que preferi chamar de “má sorte” de nós todos. Teria eu domesticado a aleatoriedade da desgraça jogando o carro contra a calçada vazia? Eu não sabia.
Tudo o que sabia, era que alguns minutos antes, poderia ter tentado prever tudo isso. Ter visto na diagonal à esquerda, ainda ao longe, a mãe que levava uma criança que parecia firmemente tomada pela mão, no canteiro central de avenida, e ter sofrido uma intuição de que ele poderia se desprender, correr por três pistas entre os carros, até a minha... E ter salvo sua jornada até a calçada com a desaceleração do carro, contendo os que vinham atrás.
Menos de quinze minutos atrás tudo poderia ter sido assim. Bastaria saber. E talvez, nem isso, bastaria apenas “desconfiar” da possibilidade. Ou então, ser o passado um lugar para onde se pudesse correr, e socorrer-se diante daqueles erros que cometemos na vida, que podem tomá-la até como o preço. Senão coisa pior, na minha opinião, como a vida de outro, quem sabe, de uma criança. Eu ainda não conseguia lembrar se consegui desviar dela ou não.
Lembrava-me apenas da tentativa. E das fotos que estavam se perdendo banhadas no meu sangue, dentro daquele pendrive que certamente sumiria ainda que eu sobrevivesse. Temia, pois a dor agora era apenas a sensação do frio. E a luz que trazia cores fortes ao azul dos do uniforme dos socorristas começava a esmorecer. Suas vozes eram agora incompreensíveis, como se viessem de uma lembrança.
Algo movia-se entre as pernas confusas deles, pareciam todos dançar uma valsa em torno do carro capotado, que era agora uma mistura entre partes soltas e meu corpo comprimido. Um par de sapatos era diferente. Eram na verdade, alpargatas pretas, como saídas de um grande avental negro. Ironicamente, tentei imaginar se seria a morte personificada. E dramaticamente, rezei mentalmente que fosse, ao menos, somente a minha.
Lá atrás, as pessoas ainda se amontoavam curiosas, a maioria das senhoras mais idosas, com a mão ao queixo. Algumas para minha direção, outras, para a direção de uma mulher em desespero, chorando, abraçada a uma criança que... eu preferia imaginar que estava em pé. Parecia estar. Desejei que estivesse. E um rosto assustou-me ao olhar-me pelo vidro partido da porta do motorista, interrompendo-me a visão, e a reflexão: -“Nove minutos e meio, rapaz. Sei que parece uma vida. Mas há mortes mais rápidas que isso. E vidas que duram menos. Queres teus nove minutos de volta? Sei que não podes responder, apenas penses nisso, por nove segundos que te restam. É o que tens de existência nesta escolha que fez. O futuro, o passado, o presente, existem, e são como os números perfeitos que levam a arquitetura da vida a fazê-la existir. Não se pode pegar os números, apenas se pode calcular suas existências. Calcules a arquitetura de tua vida no tempo, e podes viajar para o futuro, mudar teu passado, e construir teu presente com esta fórmula. E o tempo está esgotado. Senti meus olhos cerrarem, pesados como as um sol poente...
Quando arranquei o carro, nada fazia sentido. A pressa de chegar onde era preciso, o caótico trânsito desta cidade que parece querer crescer apenas para dentro de si mesma, eram muito irritantes. A oportunidade estava ali, aquela pista abriu-se como se por magia, à direita de todos os carros, e bastava entrar por ela, e acelerar. O futuro era uma mera escolha. E essa escolha seria feita. Porém, desta vez, de aleatoriedade domesticada.
Seria justo viver resgatando memórias de meu futuro? Talvez sim. Talvez mais. Talvez justo e perfeito.
.:|Ricardo|Vieira|:.
23Mar11