Manhã e noite. Luz e sombra. Não sei qual prefiro, não sei a qual me refiro quando resolvo cantar. Uma das poucas coisas que posso afirmar certamente é que eu e meus outros eus preferem uma chuva sem fim, que lava minha tristeza e solidão. Só ela purifica minha alma e consegue guiar meus passos ao que procuro. Procuro quem procura livrar-se de um tormento eterno. Mais chuva, mais algumas árvores na minha frente. Agora, uma clareira. Agora, uma fogueira de chamas azuis. Sim, acesa debaixo de chuva. E agora, devidamente sentada, viajo além do horizonte da realidade terrena.
- Você novamente, garota? O que queres mim vindo até aqui repetidamente? É o que pergunta uma voz rouca e profunda.
- Quero matar minha curiosidade, descobrir o que tu és, e você, ó nobre ancião do capuz, nunca me dá uma resposta satisfatória.
- Sou sombra e pó, atormentado eternamente pelos pecados. Fui, sou e serei muitas coisas. Anjo, aprendiz, ancião, herói e vilão, talvez governante do submundo. Sou um ser imundo, fadado a esperar a eternidade e ver manhãs e noites passarem por mim, assim, pago o que devo a mim mesmo e procuro o que nunca sei o que é e talvez nunca ache.
- Se isso tudo é o que tu és, deve ser algum deus. – respondeu a garota.
- Nunca fui. Nem deus, nem mago, nem vidente. Tampouco sábio.
- Mas você sempre conta histórias... e acho que talvez as cria.
- O vento conta. Ele entra pelos meus ouvidos e sai pela minha boca. O vento pode muito. O vento te dará uma nova história, provavelmente é o que viestes procurar. Tu que lês minha alma verá as sete canções de luz e sombra.
Assim respondeu o ancião encapuzado. E após algum som esquisito e pigarrento, abriu um livro retirado de dentro do capuz e começou a ler, com seu par de olhos vermelhos, a única coisa além das chamas que se destacava naquela escuridão.
Na primeira, temos um mero garoto. Ele criou um universo.
- Como assim “Um mero garoto criou um universo”?
- Garotos podem tudo, garota. Podem até interromper histórias, apesar de não ser a atitude mais correta.
- Perdão, nobre ancião.
- Um garoto. Ele criou um deus, que criou dois deuses, que criaram três deuses. Um onipotente, dois da manhã e noite, três destinados a elementos. A destinada para a água deveria ser transparente e flexível, porém, revoltada com seus pais, desceu para a sombra, criou um submundo, um lugar que em seu mundo chamariam de hades. No mundo da garoto, nomes são informações confidenciais. Então manhã e noite ficaram tristes, e assumiu a posse da água sua irmã mais nova. Eles criaram um universo de luz e sombra em alternância eterna. Foi a única felicidade que o garoto teve na sua vida. E após isso, ele morreu.
- Mas...por que o garoto morreu?
- Queria morrer feliz, e sabia que aquela seria a sua única felicidade.
Na segunda história, temos um mero garoto. Ele criou um vazio dentro de si mesmo. Para tentar preencher o vazio interior, dividiu sua alma em sete partes, esquizo , poderíamos apelidá-lo assim. Depois de perceber que ele próprio criou o vazio, “Sr. Morte” o visitou.
- O que procuras, meu garoto?
- Não sei, mas algo me falta.
- Sanaremos seu problema, em sete partes.
O garoto morreu sete vezes para ir ao que chamam de “paraíso”. Por ter se matado, foi condenado ao abismo e tormento.
- Não entendo suas histórias...
- A morte foi a única maneira que encontrou para sanar seu vazio.
Na terceira história, temos um mero garoto. Ele queria saber e aprender tudo que poderia ser conhecido. Tinha literal fome de conhecimento, e quando sua barriga a sentia, comia os livros que já estavam em sua mente. Ele não morreu.
- Finalmente alguém que não morreu. – diz a garota após um suspiro aliviado e um esboço de sorriso
- Ele vagou eternamente buscando a morte. Mas não podia mais morrer, já tinha aprendido a ser imortal. Viveu em um tormento eterno, guardando as portas de um lugar abissal.
Houve um silêncio. Exatos sete segundos.
Na quarta história, temos um mero garoto. Ele criou-se como um anjo, de forma tão perfeita a virar um. Sabendo que anjos não podem pecar, qual é o destino de um anjo que se apaixona por uma semideusa e daria suas asas por um beijo? Tormento eterno. Condenado a vagar e procurar sua amada por um deserto de sombra e pó. Suas asas, sua metade, seu amor, sua alma, sua sombra, sua luz, sua semideusa. Procura e tormento eterno de um anjo com um vazio preenchido por caos e sombra.
Houve um novo silêncio. Exatos trinta e sete segundos.
Na quinta história, temos um mero garoto. Ele cresceu e se tornou um grande guerreiro lendário, que salvou centenas de vidas e sete garotas. Para a primeira, seu fígado. Para a segunda, seus olhos, para a terceira, sua pele. A terceira, sua carne. A quarta, seus ossos. A quinta, sua força. A sexta, sua inteligência. A última, que chorava a perda de seu amor angelical, ganhou sua alma. Um garoto que virou guerreiro morreu com sete enormes cicatrizes.
- “Aqui jaz Cicatriz, o nobre cavaleiro morto.” Deve ser o que está escrito na lápide dele. – dissertou a garota sobre a quinta história.
- Na sexta história, temos um mero garoto. Ele queria ser diferente de todos os outros. Então se vestiu diferentes, criou uma mentalidade diferente, construiu um jogo de ideias diferentes, e viveu de forma diferente. No fim, se suicidou, para tornar-se diferente de todos os que viviam. A existência única do garoto em virou parte de um só pó morto.
- Essa eu...realmente não entendi.
- Para ser aceito, tornou-se diferente. E quando viu que a diferença não foi aceita, percebeu que os mortos aceitam todos como iguais, do mesmo pó.
Na sétima história, temos um mero garoto. Ele foi muitas coisas, e em um dia de sua vida, contou sete histórias a uma garota, de frente a uma fogueira.