Algures…Algures…numa Cidade… - Versão “alongada”…

Algures…Algures…numa Cidade… - Versão “alongada”…

Um futuro…algures no futuro…quando a luz do sol foi substituída pelas luzes da cidade, porque o sol não brilha durante 24 horas e porque as dimensões das torres faziam com que esse mesmo sol não conseguisse iluminar o solo, o que não fazia grande diferença, porque a humanidade há demasiado tempo que se habituara a ver o sol sobretudo na televisão ou na grande rede…

Nos ecrãs omnipresentes por toda a cidade passava o pulsar do planeta, com noticias ou programas de todo o género, sem parar, porque parar de estar informado ou de estar ao mesmo tempo evadido de um certo natural era a sina do novo homem, ligado de forma umbilical aos ecrãs de todos os tipos e tamanhos que o acompanhavam por todo, todo o lado, como se o corte desse cordão implicasse a morte do homem…quando o contrário pressuponha uma libertação que ele temia, por não saber viver sem essa ligação, porque aprendera a ser dependente dela, e temia o dia seguinte quando essa ligação se rompesse…

As cidades tinham então crescido de forma desmesurada, tinham invadido o campo e tinha obliterado este e tudo o que este representava…

Neste cenário dos dias de amanhã que o eram já hoje, um homem caminhava havia anos pela imensidão da cidade infinita.

Sabia que a cidade é infinita, porque raramente repetiu as suas ruas, sabia que era velho porque o rosto que via nas montras das lojas por onde passava era o rosto de um homem velho, apesar de ele não se sentir espiritualmente velho, mas era velho, sem dúvida, porque os jovens eudosados pela cultura que se queria jovem, eterna, se afastavam dele, tal como se afastavam de todos os velhos, por fazer recordar inevitavelmente que eles um dia também seriam velhos, eles um dia também morreriam, e sentia-se velho sobretudo porque as pernas já lhe doíam terrivelmente no seu périplo também ele infinito…

A cidade, já antes assustadoramente vasta, tinha crescido de uma forma assustadora desde que ele a começara a percorrer há também infinitos anos.

No seu crescimento de mega-lopolis a cidade apagara de si quase toda a natureza, menos a natureza humana, sendo que jardins só existiam dentro dos centro comerciais destinados, suprema ironia, a humanizar estes…ao ar livre pura e simplesmente que não existiam, porque cada pedaço de terra estava reservado ao crescimento da tal cidade.

Tudo o que estava associado a jardins, restante flora, animais e insectos, tinham também desaparecido, embora ninguém parecesse ter dado pela falta de tal, porque a cidade oferecia tudo, menos o tempo para se aproveitar esse todo…

Os pulmões verdes tinham sido substituídos por seus congéneres artificias, destinados a manter o ar saudável para além do veneno imanado pela cidade.

Mas ele ainda era do tempo em que ainda se podiam ver algumas árvores, ou o simples verde da natureza, e por isso sentia a falta de tal, sendo se calhar o único em milhões a sentir a falta de tal…

E naquele dia ele sentiu uma estranha melancolia, uma tristeza alegre, um saudosismo com traços de futurismo.

Descobriu então que estava a morrer, que estava prestes a morrer…

Começou a olhar à sua volta à procura de um canto onde pudesse parar e descansar para sempre, um canto silencioso e longe das pessoas, porque decidiu que era assim que queria morrer.

Foi então que viu o impossível, que entre os gigantescos edifícios viu um pedaço de verde, viu a última árvore da cidade.

Um pedaço de terra o suficiente para ter no seu colo um velho carvalho que alguém se esquecera de destruir…

Era lá que morreria…

Quando, encostado a esta bela raridade, começou a fechar os olhos pela última vez, sentiu uma pequena aragem nos seus olhos…

Abriu estes e viu… a última borboleta da cidade…

Seguiu-a com o olhar, sorrindo, mas reparou então que o seu voo não era errático, não era casual, era determinado…

Arranjou forças não soube onde, e seguiu essa borboleta…

Começou então uma viagem que durou um tempo sem tempo, uma viagem em que seguiu a última borboleta da grande cidade, uma viagem pelas suas ruas, uma viagem no tempo, porque a borboleta o levou através de bairros cada vez mais velhos, bairros de que até ele desconhecia a existência, bairros onde as casas eram mais baixas, bairros onde se podia ver o sol, até que chegou ao primeiro dos bairros, ao que deu origem a tudo, de tal ordem estreito que nem viaturas lá cabiam, quase sem pessoas, um bairro tão velho que até mesmo as tabuletas das lojas estavam escritas numa língua morta, a primeira língua da cidade…

No fim desse bairro a borboleta parou…junto de uma fonte, tão antiga como o bairro, uma fonte que ainda jorrava água, pura, impoluta…

Era aquele local…

O local onde ficaria para sempre…

A borboleta levara-o até lá…

Escolheu um canto coberto com musgo húmido, suavemente húmido…

Bebeu um pouco de água e reparou que a borboleta repousara no céu colo e morrera…

Começou a desanimar…a última borboleta da cidade morrera junto dele, que maldita última visão que se podia ter…pensou…

Olhou mais uma vez para a fonte, e reparou que havia junto delas imensos casulos, de onde começavam a sair outras borboletas que iriam invadir a cidade, e que depois iriam dar origem a outras, e a mais outras borboletas, até que a cidade imensa estaria cheia de borboletas…

Compreendeu então o que lhe dissera a borboleta que o trouxera até ali…

Ela sentira-o a morrer e quis leva-lo ao local onde a natureza começava a vencer outra vez, quis que ele soubesse que milhões de borboletas estavam prestes a tomar docemente conta do seu mundo, que o mundo que ele conhecera estava prestes a mudar…

Ele percebeu e morreu por fim, morreu feliz ao ver um enxame de belíssimas borboletas a invadir a sua cidade, e a devolver à cidade anónima a alma que lhe faltava, a alma que se tinha perdido, mas que agora simples e aparentemente insignificantes borboletas iram resgatar…

Algures…Algures…numa Cidade…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 19/03/2011
Código do texto: T2857843
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