ENTRONCAMENTO
Entroncamento
Trabalhei durante um tempo num entroncamento. Sabe o que é um entroncamento? É uma interconexão entre duas vias. Peguei essa definição num dicionário. Só pra me fazer mais claro. Lá funcionava uma lanchonete de beira de estrada. Bem na minha frente passava a estrada Itapetinga, paralela comigo e, vindo de trás, e se perdendo no horizonte, passava a rodovia Macarani. Por dois anos essa foi minha rotina: olhar esse cruzamento.
Era sol como quase todos os dias na região. O campim verde balancava pelas rajadas fofa de vento. Adiante, do outro lado da estrada, os morros, cercas e bosques formavam algo que ia se aprofundando e dançando conforme apurava minha vista. Fazia esse treino do olhar pra passar o tempo, procurando novidades ou mudanças no ambiente, que de verdade, mudava muito pouco.
Desceu do ônibus uma moça acompanhada de sua mãe. Imagino que seja mãe, não pela aparência mas pela intimidade forçada entre elas, e claro, pela diferença de idade. A mais velha logo sentou. Direto, sem pensar. Murchou o corpo como se tivesse exausta. A moça, a mais nova, bonita mesmo. Digo o mesmo porque não me deixo mais me enganar por maquiagens, boas roupas ou posturas afetadas. Ela era naturalmente bonita. Essa ficou de pé. Abandonou sua mala na beira do asfalto. Chamou a atenção pela dimensão exagerada da mala. Estufada, como se tivesse colocado muito mais que sua capacidade. Há uns dois metros da mãe, olhava sem animo o horizonte. Mas não definia muito a direção que olhava. Estava confusa entre o destino e sua origem. Tinha um vestido curto, muito pouco abaixo do joelho. Era branco, parecia algodão e os detalhes verdes não se definia pra mim, pela distância ou pelo tamanho dos desenhos. O vestido ficou muito em primeiro plano, pelo esforço que ela fazia, com as duas mãos, para que a roupa não fosse capturada pelo vento, que empurrava pra cima frangindo das bordas até a cintura, contornando suas formas.
Logo sentou junto a mãe, que parecia ser mais próxima dela que o inverso. Assim
Que as duas estavam próximas, a mãe disse varias coisas em seu ouvido, como segredo. Dizia com o mesmo gesto, insistia. ela não respondia, nem mexia nada do corpo. Percebia
Seus cansaços. As duas pareciam cansadas. Mas a filha era mais segura. De costa podia sem perda da imagem inverter seus papeis. A mais velha se comportava de forma submissa. E não demonstrava certeza de estar sendo ouvida. A menina, a bonita, ou a mais nova, como quiser, não parava de olhar sua mala no asfalto. Eu sentia de longe sua preguiça ou indecisão. É dificil ser claro. Em trazer pra próximo dela seus pertences. Isso me chamou atenção porque a mala estava abandonada, apesar de estar ao alcance seus olhos. Tinha algo de solitário naquela mala. Já a mãe não tinha mala grande, apenas uma bolsa pequena de ombro. Marrom, de aspecto antigo exegeradamente protegida em seu colo. Vez ou outra ela procurava algo dentro. Que não era encontrado e logo desistia, era mais um caquete que uma necessidade.
Depois de uma meia hora. A senhora mais velha veio até mim e perguntou
- o que voce tem pra comer?
Dei a ela o cardápio. Escolheu um pastel e um refrigerante. Levou até a moça que não recebeu. Continuava olhando em direção a origem do ônibus. E mãe voltou e algumas balas. Enquanto isso encostou um carro. Um carro velho. Parecia um chevete. Não sou bom com nomes de carros. Estamos nos anos oitenta. Desceu do carro homem magro de cabelos bagunçado e um cigarro acesso em uma das mãos. A velha, de perto é bem mais velha. Então vou chama-la assim, quando viu, parou de repente e ficou olhando junto comigo. Como se os dois quiséssemos fazer a mesma fotografia. O homem levou o cigarro até a boca, deu um trago rápido, e falou algo profundo pra ela. Sei que era profundo porque seu rosto se esmagava com a fala e os olhos mesmo de longe pareciam em choque. Voltava o cigarro a boca. Apertava os cabelos com a outra mão. E falava muito. Não dava pra ouvir as palavras. Não dava pra compreender o que se passava. Porque ela não olhava pra ele. Comportava com ele como comportava perto da mãe. Tentava tocar seu rosto, que rapidamente ela afastava. Estava imovel. Tudo aquilo parecia que não era com ela. A mãe, perto de mim, fazia pequenos movimentos com o corpo e as mãos, queria ir até eles, mas algo a impedia. O motor do carro ligado. Os cabelos dele ia com o vento e o cigarro cada vez menor.
Parece cansado, pára de falar. Mas antes disso olha ela de um jeito que mesmo de longe, eu fiquei pequeno. Entrou no carro. Saiu forte. Deixando marca no asfalto. Ela estátua, não se mexeu. A mãe. A suposta mãe. Deixou-a sozinha mais um tempo. Pediu mais refrigerante e outro pastel. Voltou até ela, saciada de sua fome. Sentou do seu lado. Alisou seu cabelo. E as duas continuaram olhando se o ônibus já estava chegando.