MARACANGALHA I

Quase meia hora depois de terem passado pela maior e mais marcante experiência de suas vidas, os amigos caçadores retornam ao ponto onde a aeronave caiu de bico e mal transpassam a cerca de arame farpado, vão aos poucos se aproximando e ainda estupefatos, ficam a desacreditar no que veem. Estava ao redor dos destroços – iguais famintos urubus na carniça – um terço do acampamento dos sem-terra, o qual ficava a poucos minutos de caminhada do local, quase a totalidade dos moradores dos povoados de Sapucaia de Cima e Sapucaia de Baixo, – àqueles que não saíram bem cedinho para as roças –, seguramente mais da metade dos moradores do distrito de Maracangalha, alguns residentes de São Sebastião do Passé, vaqueiros de fazendas da região e quase meia centena de rostos desconhecidos, prováveis condutores e passageiros dos carros estacionados ao longo da BR – 110, a qual passava margeando a fazenda. Juntando-se àquela multidão descontrolada, onde ninguém enxergava ninguém, os amigos iniciaram as buscas por cédulas perdidas na pastagem, a qual já atingia um raio de mais de duzentos metros de área do ponto onde o pequeno bimotor deixou um buraco de mais de dois metros de diâmetro, provenientes dos malotes rompidos durante a queda.

– É gente, viu Val? – Comenta Naldinho com o amigo, agachando-se de imediato a recolher algumas cédulas que o vento teimava em afastá-las de si, olhos a brilharem continuadamente enquanto recolhia o máximo que podia, já antevendo a mudança radical no futuro, até então, incerto. A visão do dinheiro fácil em quantidade nunca possuída fazia todos se concentrarem na coleta da maior quantidade possível, em posições nada confortáveis, muitos agachados em meio aos excrementos recém deixados por reses amedrontadas, onde alguns pisavam sem qualquer cerimônia. Isso sem contar na poeira que circulava continuamente pelo ambiente, em forma de redemoinho, proveniente daquela clareira recém aberta, somado ao sol esturricante de quase uma da tarde.

– É tiro, Naldinho... Corre! – Grita o amigo, enquanto corre para o lado contrário de onde alguns policiais chegam, empunhando armas e atirando para o alto, a intimidar os presentes. Aqueles que estavam com volumes vistosos em forma de sacos, sacolas e bolsas foram retidos, aos gritos, no local. A maioria saiu em desabalada carreira pelos quatro cantos do pasto, muitos a se refugiarem no matagal, fazendo com que quase duas centenas de pessoas evaporassem como por encanto, os amigos no meio, principalmente por portarem armas e estarem com capangas a tiracolo.

E depois desse fato, Maracangalha não mais seria conhecida como a terra que abrigou a Usina Cinco Rios por setenta e cinco anos, ou imortalizada pela música do mestre Caymmy. Não era todo dia que dinheiro caía do céu... E o castigo veio a galope, digo, a jato. Nem bem anoiteceu, aportaram na região policiais bandidos, bandidos travestidos de policiais, milicianos, traficantes, ladrões de toda estirpe, aproveitadores, gananciosos e todo e qualquer oportunista, guiados pela notícia fresca divulgada pelas rádios por toda tarde, informando que o avião espalhou quase seis milhões de reais e até o momento, menos de um por cento tinha sido recuperado pela polícia. Aproveitando-se da ingenuidade do povo e da inveja gratuita, a apontar quem conseguiu pegar uma maior quantidade, o terror varou noite. Casas foram invadidas, muitas saqueadas, e muitos moradores tomaram bordoadas pela cara para arrotar onde tinham enterrado o dinheiro. E bastava a noite aproximar-se em todos os dias posteriores que o silêncio instalava-se no local, onde todos se trancavam, o que não impedia de portas serem arrombadas e homens e mulheres serem arrastados por marginais encapuzados, a entregar de qualquer maneira a quantia surrupiada.

E como não havia inocentes, foi necessário um assassinato para que o governo tomasse consciência do terror instalado no local, já bastante divulgado pela televisão, enviando cinco dias após a queda da aeronave, tropas especiais para salvaguardar as famílias aterrorizadas. E se no domingo anterior ao ocorrido, Val estava a comemorar o noivado com Nice, no churrasco festivo regado a cerveja bem gelada, nesse estava enterrando o cunhado amigo. Muitas das casas já tinham sido vasculhadas e a evitar pancadas e ameaças, as quais estavam se intensificando, os moradores intimidados confirmavam quem esteve no local naquele dia fatídico. E o cerco foi se fechando. E na madrugada do sábado, mais cinco casas foram invadidas, dentre elas a do lavrador Antonio Dias de Araújo, no povoado de Sapucaia de Cima. Levaram as economias do pobre trabalhador e ao rasgarem o travesseiro no quarto de Naldinho, conseguiram apurar quase três mil reais. E como argumento de intimidação, a forçarem os moradores da casa a confessarem onde tinham enterrado o restante do dinheiro, isso depois de terem revirado a casa em todos os seus recantos, arrastaram a bela irmã pelos cabelos, ameaçando estuprá-la, pouco antes de socarem a mãe adoentada e logo depois de terem aplicado uma violenta coronhada no rosto do pobre chefe de família. Naldinho não aguentou. Apoderando-se da velha espingarda, saiu gritando atrás dos malfeitores. Não deu cinco passos. Foi só um tiro na cabeça e o estampido ecoou por toda a noite na mente de todos, ninguém com coragem o bastante para ousar colocar um olho na rua tenebrosa, mesmo com toda aquela gritaria.

Já fazia uma semana que Val estava dormindo na casa da amada, a consolá-la e protegê-los, na ausência do saudoso amigo. E sabia que os marginais descobririam que também esteve no local. E a evitar qualquer agressão gratuita, pegou os quase cinco mil reais apurados quando retornou ao local do acidente e colocou, preso a um elástico, no bolso da capanga surrada. A morte do amigo, somados ao toque de recolher e a presença de policiais armados a efetuarem ronda por toda a região, aplacou o desejo insaciável dos meliantes. Na sexta, quase uma semana após a perda do amigo, a polícia prendeu dois ladrões conhecidos e um ex-policial militar rondando a região. E a truculência dos bandidos não poupou nem o acampamento dos sem-terra, quando um terço abandonou o local logo no dia seguinte. E a evitar riscos para os cidadãos de bem, os próprios investigadores da polícia revistaram todas as residências da região, encontrando dinheiro em fogões, armários, banheiros, debaixo de colchões, guardados em gavetas e com o apoio dos fofoqueiros, enterrados em vários pontos de quintais. Até três sem-terra foram presos, quando recuperaram quase quatro mil reais.

Com a farra do dinheiro, esqueceram-se completamente dos quatro mortos – piloto, co-piloto e dois seguranças –, que estavam no bimotor, fretado por alguns bancos para recolherem grandes volumes de dinheiro em estados vizinhos. Tampouco se importavam com o motivo da queda do avião. Todos só queriam saber do dinheiro. E na quarta à noite, mais de duas semanas após ter dando proteção à noiva e seus familiares, Valdemiro retornou para casa, a organizar todas as pendências, visto que viajaria já na sexta para São Paulo. Já passava da meia noite quando arrombaram, num forte estrondo, a porta da entrada, não dando tempo para qualquer reação. Os cinco meliantes mascarados juntaram a mãe, Val e os dois irmãos num canto da sala e em menos de quinze minutos, reviraram todos os cômodos, não dando ouvidos para a confissão de que o único dinheiro existente era aquele guardado na velha capanga. Após algumas agressões e a ameaça de retornarem caso o restante do dinheiro não aparecesse, evadiram-se, deixando no local um rastro de destruição, imagem esta que ficou guardada nas lembranças do exímio caçador em todas as noites em que deitou no dormitório da Usina Serra Grande.

Quase um ano se passou e toda a comunidade da região ainda continuava em pânico. Alguns meliantes continuavam a operar na área, invadindo vez ou outra, casas, sequestrando pessoas, agredindo sem distinção a quem não entregasse qualquer dinheiro existente. E assim muitos perderam as economias de muitos anos de trabalho, outros as indenizações recebidas de empresas acionadas ou diferenças de aposentadorias e até o próprio salário dos incautos era subtraído, fazendo do local um desprazer contínuo. Todo e qualquer estranho eram sempre malvisto na região e mal um carro se aproximava, mães amedrontadas de imediato recolhiam seus filhos para a proteção das casas, fechando portas e janelas e muitos se recusavam a falar sobre o assunto, mesmo se o repórter fosse de jornal conhecido. E o destino do grosso do dinheiro ninguém sabia e passado todo esse tempo, a polícia tinha apurado menos de dez por cento do montante. E os pobres moradores que antes eram pobres e felizes, após a queda do avião ficaram mais pobres e além da infelicidade reinante, ganharam no olhar a desconfiança e a incerteza. E para a maioria, quando ventilavam o assunto entre si, diziam de pronto: “Esse dinheiro só trouxe desgraça!”

Quase três meses após seu retorno dos canaviais, nosso caçador transformou-se em outro homem. Casou-se com a bela Nice em uma cerimônia simples, saía para caçar bem cedo e sempre sozinho e nunca repetia um mesmo local, além de sair em dias alternados, a desconfiança instalada nos poros. Não falava sobre o acidente da fazenda Nossa Senhora nem com os mais próximos e aguardava somente os últimos preparativos para mudar-se definitivamente para o estado de São Paulo, onde, segundo comentava, teria arranjado um bom emprego. E a dois dias de completar um ano do fatídico dia, os recém-casados embarcaram para São Paulo e mal chegaram à rodoviária, embarcaram novamente em outro ônibus, com destino ao oeste do estado, para uma cidade de médio porte, nas proximidades do estado do Paraná. Só então a excitada esposa veio se inteirar dos quase três milhões de reais enterrados na sombra do mulungu por todo esse tempo, dinheiro esse pertencente a eles, em memória de Naldinho. E aguardariam só o tempo necessário para trazer toda a família, quando só em disco estariam a ouvir o arrepiante refrão: “Eu vou pra Maracangalha eu vou; Eu vou de chapéu de palha, eu vou...”

RAbreu
Enviado por RAbreu em 17/03/2011
Reeditado em 18/04/2011
Código do texto: T2853441