MARACANGALHA

A melancolia reinante na pequena vila com pouco mais de cem casas simples atingiam a todos naquela manhã de uma insossa quarta-feira úmida e quente, mal começara a pequena movimentação na praça em formato de violão. Enquanto os mais velhos viviam da parca aposentadoria e as crianças auxiliavam nos afazeres de casa ou no apoio de pequenos roçados, os jovens sobreviviam exclusivamente do corte da cana-de-açúcar. E muitos deles estavam desde dezembro vivendo de bico, não importando qual atividade, ansiando todas as noites pelo final do mês de abril, quando embarcariam para o estado de São Paulo, a passarem seis meses ininterruptos, mais de doze horas por dia de trabalho por demais estafante, jogados no canavial desde as cinco da matina, a cortar, cada um, mais de seis toneladas de cana crua, todos os dias. Mas, se maldiziam o trabalho escravo, pior era trabalho nenhum para quem, desde a puberdade, enveredou-se nessa profissão, sem qualquer outra perspectiva, em razão da baixa escolaridade. E as notícias que chegavam desde o início do ano e iam se espalhando com o vento, não eram nada boas. A automação dos canaviais paulistas, a demitir, seguramente, nos próximos três anos, mais de quarenta mil trabalhadores braçais, onde não haveria realocação para mais de dez por cento, atormentava o pensamento de todos em muitas e muitas noites de insônia.

Nesse estado de ânimo encontrava-se Valdemiro, desde o momento em que o sol apareceu naquele quatorze de março. O bisavô, o avô e o pai trabalharam com orgulho na grandiosa Usina Cinco Rios, uma das mais tradicionais do Recôncavo Baiano, da qual ultimamente só restavam as ruínas. O avô, mesmo à beira da morte, não cansava de falar sobre a grande movimentação no município e região, desde a inauguração em 1912, até seu auge, quando a mesma chegou a empregar mais de mil trabalhadores e a produzir trezentas mil sacas de açúcar por ano. E o pai trabalhou até o ano de 1987, vinte anos atrás, quando enfim a saudosa e tão importante usina encerrou suas atividades e até seu falecimento, em agosto de 2002, nada conseguia produzir, ficando sentado na porta da casa, de domingo a domingo, enrolando seu cigarro de palha de tempos em tempos, onde qualquer prosa iniciada por algum amigo ou conhecido, era respondido por monossílabos mal pronunciados, o gasto chapéu de palha enterrado continuamente até os olhos.

Mal assentou no estômago o encorpado café preto acompanhado de beiju de tapioca passado na manteiga de garrafa, o franzino Val ajeitou o chapéu e saiu de casa, espingarda atravessada nas costas e a gasta capanga de lona amarela pesando o ombro esquerdo. Atravessou em passos lentos o pobre vilarejo em direção ao minúsculo povoado de Sapucaia de Cima, cumprimentando os poucos moradores que ousavam colocar a cabeça para fora de casa. Por mais que não quisesse qualquer tipo de prosa, nada poderia fazer, pois metade do distrito e parte da região tinha “Santos” no sobrenome, os quais faziam parte de sua família, onde existiam até primo casado com prima carnal e irmão com meia-irmã. E achava engraçado o viver e seus contornos. Enquanto para si e a maioria dos moradores o que valia na região era a saudade dos tempos áureos, com a usina em atividade e o trem a transportar diariamente a riqueza da região pela ferrovia fervilhante, para todas as pessoas de fora, bastava descobrirem que nascera no distrito de Maracangalha, na Bahia, o que de imediato vinha à mente era a música homônima de Dorival Caymmi, imortalizada mundo afora.

Quase uma hora depois de ter iniciado a solitária caminhada, Val chega ao paupérrimo povoado e ao aproximar-se da última das dez casas de paredes desbotadas, retira o chapéu, enxuga o suor do rosto avermelhado com o velho lenço e já com o semblante mais sereno, bate à porta uma única vez com os nós dos dedos, e após chupar fortemente um dos dentes, aguarda pacientemente.

– Oi amor! Entre. O café tá na mesa. – Abre-lhe caminho, após sapecar nos lábios ressequidos um beijo estridente, uma vistosa morena de cabelos cumpridos e farto sorriso, a sensualidade adolescente enaltecida naquele vestido simples colado ao corpo manhoso.

– Que nada... Já to cheio. Cadê Naldinho? – Pergunta-lhe, enquanto caminha pela sala de terra batida, entrelaçando seus dedos aos dela, dando pequenos e alternados apertos na mão quente e calejada, na cumplicidade que só os apaixonados conhecem.

– Já está pronto. E vê se dessa vez vocês não demoram. Hoje painho e mainha vão comer lá na roça e não quero ficar largada aqui, sozinha nesse calorão.

– Se preocupe não, mana! Hoje quem derruba mais de três sou eu... – O jovem sorridente sai do quarto aprumando o chapéu de camurça, aperta efusivamente a mão do amigo e fica por alguns minutos do lado de fora da casa, encarando aquele sol ainda ameno do início da manhã promissora, enquanto aguarda o término do carinho dos amantes. Quando retornassem de São Paulo, lá para o final do ano, sua irmã seria uma mulher casada; assim prometera Val, no churrasco do domingo passado.

Os amigos seguem em passos curtos pela maltratada estrada de terra avermelhada, circundada continuamente por pastagens ainda mirradas pelo abrasamento do verão, onde o assunto em pauta era o futuro incerto, o desemprego a rondar o triste povoado, fazendo do planejamento sólido de anos anteriores, incertezas vindouras. Enquanto os jovens em sua maioria ajudavam nos roçados e fazendas da região nesse período de recesso, os amigos perambulavam todos os dias da semana por fazendas mais próximas, onde os pontos de mata cerrada escondiam coelhos, preás, nambus, tamanduás, codornas, perdizes, cobras e tatus, onde o verdadeiro era o troféu mais cobiçado. E dessa vez não foram muito longe. Menos de meia légua depois e já estavam escondidos nas moitas, aguardando a vítima da vez. E como das vezes anteriores, o fator preponderante era a tal da sorte. E se Val se deu bem na última caçada, dessa vez Naldinho pressentira que seria seu dia, enaltecido pela postura por demais descontraída, a tratar as adversidades com gracejo. E para eles, o único receio era cruzarem com a pintada; traiçoeira e solitária, a onça predominante na região não se intimidava com nada, caçando sorrateiramente em todos os horários, as mesmas presas que eles. Esse o motivo dos amigos se posicionarem de maneira onde um defendia os costados do outro, a evitar surpresas desagradáveis.

Passado pouco mais de duas horas, nada ainda tinha acontecido. Incentivado por Val, Naldinho acatou adentrarem mais ainda na mata, no mesmo local onde mês passado tropeçaram com um destemido porco-espinho, gerando uma baita confusão. E ali, camuflados nas folhagens, sombreados a fugir do sol inclemente, aproveitaram uma pausa na tensa postura para comerem a farofa de carne seca acompanhada de pedaços de pão. E enquanto molhava o rosto com um pouco da água do cantil de alumínio, Val ficava a se perguntar o que estava acontecendo, se normalmente uma hora daquelas, eles já tinham abatido, seguramente, umas duas presas. Considerados na região como os mais destemidos caçadores da nova geração, eram o orgulho dos familiares. Nesse momento eles retesam os músculos, a se manterem em posição de alerta, as armas de pronto apontadas para o local aonde o barulho ia aos poucos se intensificando, na mesma medida em que os batimentos cardíacos aceleravam. Os tensos minutos já estavam em seu auge, os indicadores tesos nos gatilhos metálicos, quando do nada surge um ronco inesperado no alto, fazendo a futura presa descambar mata adentro, gerando de pronto todo tipo de impropérios das bocas de nossos caçadores.

O pequeno avião dá um rasante próximo à copa das árvores onde se encontram os irritados amigos, mal dando para visualizar sua fuselagem, faz uma curva em meia lua e menos de um minuto depois se ouve um forte estrondo.

– Deus do céu! Caiu, Val... Vamos lá! – De imediato os amigos esquecem-se da caçada promissora e saem correndo em direção ao barulho, ajeitando as espingardas nas costas, atravessando as capangas no pescoço, segurando como podem os chapéus e desviando-se de qualquer jeito dos arbustos mais altos. Em poucos minutos destampam na planície e ofegantes ficam a observar algum sinal de fumaça, naquela extensão de pastagens.

– Com certeza, foi pra lá... – Aponta Naldinho em direção ao povoado, a preocupação estampada no rosto, enquanto passa a camurça do chapéu a limpar o suor que se espalha aos borbotões pela testa.

– Só pode... – Confirma o amigo, aguçando o olhar, a tentar visualizar alguma anormalidade na paisagem. – E parece que não explodiu... – Dito isso, saem a correr pelo meio do pasto, as botas e calças jeans a protegerem-nos de arranhões ou qualquer outro possível ferimento. E não completam dez minutos de correria, mal destampam na divisa com a fazenda Nossa Senhora e avistam na baixada, sobre um pequeno morro, os destroços. Pulam a cerca e correm mais uns trezentos metros e ainda atordoados, corações a batucarem descontroladamente nas caixas dos peitos, descompassando o pensar, como se estivessem frente a frente com a pintada, a rosnar ameaçadoramente segundos antes do bote fatal, refreiam.

– Naldinho... Por Deus... É dinheiro! – Exclama um assombrado Valdemiro, enquanto fica a observar as cédulas coloridas a esvoaçarem em sua frente, a poeira já assentando, já dando para ver, nitidamente, os restos do avião uns vinte metros à frente, o qual rasgou sem piedade a pastagem em todo o percurso, como se já existisse uma pequena estrada no meio do pasto, dezenas de reses a mugirem e a correrem, sem saber para onde.

– Olhe ali! – Aponta Naldinho, enquanto corre em direção aos malotes e arrasta o mais robusto para o local onde depositou a espingarda e a capanga. Val faz o mesmo, imaginando uma média de trinta a quarenta quilos no volumoso malote e quando já estão preparados para pegarem mais dois, se dão conta que não são os únicos. Como que por milagre, pessoas de todo tipo correm em direção ao bimotor espatifado e em menos de dois minutos já somam mais que as reses da pastagem, fazendo com que os amigos pensem rapidamente em uma solução e de pronto abraçam os malotes, ajeitam os trecos de qualquer jeito, a vontade de urinar se avolumando e recuam para o ponto de onde vieram, perfazendo o caminho de volta até a mata em mais do dobro do tempo. Quase no ponto em que estiveram a abater a primeira presa, momentos atrás, deitam tudo próximo a um frondoso capa-homem e enquanto esvaziam as bexigas, corações ainda acelerados, planejam o melhor a fazer.

RAbreu
Enviado por RAbreu em 17/03/2011
Reeditado em 18/04/2011
Código do texto: T2853435