CHAGALL E O FUSCA



Aquela reprodução de um quadro de Marc Chagall, dependurado na parede do play-ground, era uma das coisas que mais o incomodava. Aliás, não apenas aquela tela o incomodava, mas todas as ridículas telas de Chagall o incomodava. Maior incômodo apenas o daquele fusca, azul como uma tela de Chagall, estacionado bem próximo à saída da garagem do seu prédio, dificultando-lhe as manobras. A princípio ele pensou que o fusca ia ficar ali por pouco tempo. Mas passou-se um dia, mais outro e já duas semanas completar-se-iam, amanhã. O fusca continuava lá, parado, um dos pneus já semivazio. O Chagall podia esperar, mais cedo ou mais tarde se livraria dele, já pensara em diversas possibilidades: candidatar-se a síndico do prédio e realizar uma reforma, descartando o quadro; presentear o condomínio com um quadro mais bonito, em troca da daquele ou, mesmo, roubá-lo, na calada da noite, quando até o vigia já estivesse dormindo, em seu posto. E ele dormia, tinha certeza. Não poucas vezes flagrara-o em pleno sono, madrugada alta, quando chegava das suas farras ocasionais. Como alguém poderia gostar dos quadros de Chagall? Imagens sem sombra, sem luz, sem perspectivas, bichos com cara de gente, gente com cara de bicho! “Qualquer criança de seis anos pinta melhor”, confessava-se, ocasionalmente.

No início da terceira semana já não agüentava mais. Não o Chagall, mas o fusca. Alguém tinha que tomar uma providência. Aquele carro não poderia continuar ali, aguardando indefinidamente. Esperou mais uma semana e nada. Completava-se um mês que o fusca estava ali, já fazia aniversário. Pela manhã, antes de ir para a redação da revista cultural onde trabalhava, liga para o departamento de trânsito: Senhor, o número da placa informado não existe, Como, não existe? Eu estou agora mesmo, daqui da janela do meu apartamento olhando para ela, Infelizmente, senhor, informa a gentil voz feminina do outro lado da linha, o veículo não poderá ser rebocado, uma vez que ele não existe nos nossos registros. Obrigado por sua ligação. Pi, pi, pi, pi, pi...

Mateus lembrou-se do Roque, e que ele lhe devia um favor. Foi quando ainda era repórter policial. Roque estava em vias de ser promovido a major da polícia militar, mas fora flagrado pela câmera do jovem repórter surrando um menino de rua. Aquilo, sim, daria uma manchete e tanto na página dezoito do primeiro caderno! Roque o procurou, foi educado, pediu desculpas, disse que tinha sido um impulso, contou-lhe a situação. Mateus tomou a acertada decisão de trocar um “furo” jornalístico por um favor. Afinal de contas, não seria o último abuso aos direitos humanos a ser cometido em Salvador. Apelou para o “amigo”. Algumas horas depois, a resposta:

— Mateus, a informação que tenho não é das melhores. A placa do carro que você citou foi apagada dos registros do departamento de trânsito. Isso mesmo que você ouviu: apagada, deletada, eliminada. E posso lhe garantir uma coisa: quando isso acontece, o caso é grave. Cuidado com o que você está mexendo, rapaz, não quero ter que lhe colocar no fundo de um camburão. E mais: eu não lhe disse nada, hem? Me tire de problema!

Por pouco Mateus não entra em pânico. Sua última chance de conseguir fazer com que o fusca fosse rebocado ia por água abaixo. Ninguém podia rebocar um carro que não existia. Será, então, que o fusca existia apenas para ele? Antes de ir para a redação - e após ter passado mais uma vez pelo Chagall - quis se certificar.

— Seu Antônio, o senhor está vendo aquele fusca parado ali? — perguntou ao zelador.
— Qual? Aquele azul? Claro, Seu Mateus, tem mais de mês! — pelo menos não era uma ilusão de ótica.
— E você sabe se ele pertence a algum morador aqui da rua?
— Sei não, Seu Mateus. Eu só via a moça que dirigia ele entrar naquele prédio ali de frente, mas não sei se ela mora lá, não. O senhor pergunte ao Chico, o porteiro de lá.

Sem perda de tempo Mateus vai até o prédio vizinho e interroga o homem. Ele garante que a moça não morava lá, só aparecia de vez em quando. Era do 607 que por sinal, está para alugar. A chave ficava na portaria, mesmo. Mateus a pede e vai até o apartamento. Ele estava mobiliado exiguamente. Cama, fogão, geladeira, som, sem televisão. No quarto ainda se podia sentir um leve perfume: Eternity. Mateus abriu gavetas, levantou o colchão, buscou alguma pista sobre a misteriosa mulher em todos os cômodos, e nada. Já estava atrasado para o trabalho. Anota o telefone da imobiliária e vai embora.

Fevereiro chegava ao término, mas o calor ainda era infernal. Em alguns pontos da mal lavada cidade ainda recendia o forte cheiro do mijo do carnaval. Na redação, uma desagradável notícia o esperava.

— Mateus, uma viagemzinha o aguarda. — informou Ricardo, o redator-chefe — Mas não se preocupe, é aqui para perto, em Cruz das Almas. Na seção de artes plásticas da edição de março vamos fazer uma homenagem ao aniversário de morte de um grande pintor: Marc Chagall, que morreu no dia 28. Matéria de capa, viu? Fui informado, na Escola de Belas Artes, que a maior especialista baiana em Chagall, Antonieta Melo, mora em Cruz das Almas e só vem a Salvador raramente. Não podemos esperar sua próxima vinda, então, tenho que mandar você até lá.

Que droga, pensou Mateus. Além de ser o merda do Chagall, aquela viagem inesperada iria atrapalhar suas investigações, adiando ainda mais o fim do fusca. Pensou em recusar o trabalho, mas Ricardo andava com os nervos à flor da pele: problemas conjugais. O chefe liberou-o do expediente à tarde, para que ele tivesse tempo de pesquisar alguma coisa sobre o pintor, antes da viagem. Ainda pela manhã ligou para a imobiliária que estava alugando o 607. Para sua sorte ela ficava no bairro dos Barris, pertinho da Biblioteca Central.

De estômago revirado colheu as informações básicas necessárias sobre Chagall e, da biblioteca, foi à imobiliária. Após muita conversa, idas, vindas e discussões sobre o último jogo do Bahia contra o Vitória, no Estádio da Fonte Nova e qual a praia que estava sendo mais freqüentada pelas mulheres naquele verão, Mateus chegou aonde queria: ganhou intimidade com o agente imobiliário, que confessou-lhe, como quem conta um segredo de confessionário, que o locatário anterior havia suicidado. Ele sonegava aquela informação a todos, lógico, temia que julgassem ser o apartamento mal-assombrado, mas resolvera lhe contar, ele lhe pareceu um bom sujeito e, ainda mais, torcedor do Bahia!

O nome do suicida não lhe era estranho, talvez alguém da política. Estava afastado das redações dos jornais, por isso não se lembrava. Foi em busca de Augusto, seu antigo colega, na redação de um importante jornal da cidade.

— Claro que sei quem é o homem, Mateus! Ele era secretário do governo. É verdade, suicidou há pouco tempo, e por mais que todos os jornalistas da Bahia tentassem descobrir o motivo, ninguém conseguiu saber de nada! O segredo foi com ele para debaixo de sete palmos, no Cemitério do Campo Santo.

Augusto conseguiu uma cópia da matéria. Na foto do funeral, muitas conhecidas personalidades do meio político local. Em segundo plano, uma discreta mulher, de cabelos claros (talvez louros, a foto era em preto-e-branco) e óculos escuros destacava-se pela sua beleza.

No dia seguinte, após passar pelo Chagall e pelo fusca, Mateus seguiu para Cruz das Almas. A redação se incumbiu de fazer o primeiro contato e marcar a entrevista com a expert. A casa era espaçosa e os tons de azul e lilás com que era pintada demonstravam a preferência da proprietária.

Quando a porta foi aberta, Mateus empalideceu, sentiu as pernas tremerem-lhe, apoiou-se no contramarco e mal conseguiu balbuciar o “bom dia”. Era ela. Antonieta Melo era a mulher da foto!

Passaram juntos toda a manhã. Antonieta falava de Chagall com um entusiasmo contagiante. Seus olhos, quase sempre vazios como os de uma modelo de Modigliani, brilhavam ao falar dos momentos mais intensos da vida do pintor judeu-russo, a sua contínua fuga dos conflitos bélicos que assolaram a Europa do início e meados do século XX, do seu amor por Bela Rosenfeld, a mulher da sua vida. Mateus tentava acompanhar, registrar, no papel e no gravador, tudo o que de mais importante ela dizia. Mas seu pensamento voava. Não poucas vezes pensou em perguntar o que estaria fazendo ela naquele funeral. Seria amiga da família? Teria conhecido o falecido? Controlava, a custo, a sua curiosidade. Convidado para o almoço, aceitou. Mas mesmo enquanto comiam, o assunto era Chagall. Após o almoço, a despedida. Antonieta declarou-se muito honrada com aquela deferência da revista, mandar um jornalista tão longe somente para entrevistá-la! Mateus garantiu que foi um prazer. Como se não bastasse, Antonieta emprestou-lhe um dos vários livros que possuía sobre o pintor, para que ele o lesse e obtivesse ainda outras informações, que tivessem porventura escapado. Devolveria-o na primeira oportunidade ou enviaria-o pelos Correios, registrado, por segurança. No abraço de despedida sentiu o delicioso aroma do Eternity de Antonieta.

A dúvida o acompanhou por todo o caminho de volta, na estrada, sobre as águas azuis da Baía de Todos os Santos, enquanto fazia o percurso Itaparica-Salvador, a bordo do ferry-boat. Em casa, colocou sobre a cama a reportagem, com a foto em que Antonieta aparece ao fundo, e o livro que ela emprestara. Tomou um banho e, de volta, começou a folheá-lo. “Sou feliz”, dizia Chagall em um trecho, “creio em Deus, na pintura e na música de Mozart”. No livro, uma fotografia da tela cuja reprodução habitava o play-ground. Era O Aniversário, pintado em 1915. Nele, um casal de amantes flutua pelo ar, em plena liberdade.

O sono, devido ao cansaço da viagem, o tomou repentinamente. Só voltou a acordar pela manhã. O livro, emprestado com tanto carinho e com tantas recomendações, estava caído no chão, dorso para cima, folhas amassadas. De dentro dele saía um papel. Um papel com timbre de telegrama. “Meus amigosvg descobri tudopt Tenho provasvg um dossiet completovg fotos comprometedoraspt Precisamos conversarpt” A assinatura era de um poderoso “cacique político” local.

Na redação, lançou-se vigorosamente a escrever o seu artigo sobre Chagall. Nos intervalos, juntava as peças daquele quebra-cabeça, desencontrado como um quadro do mestre que viveu por quase cem anos. À tarde não resistiu e ligou para Antonieta.

— Antonieta, dentro do livro que você me emprestou havia um telegrama. — Ouviu um suspiro vindo da agora distante Cruz das Almas — Eu acho que sei o que aconteceu entre você e o...
— Não podemos falar disso por telefone, Mateus. Venha até aqui.

Mateus alegou que a conversa que tivera com Antonieta não fora o bastante para elaborar o texto e precisava retornar lá no dia seguinte. O chefe objetou, resmungou, protestou, criticou sua falta de profissionalismo e negou a verba. Mateus foi, por conta própria.

Antonieta estava com um vestido escuro, que contrastava ainda mais com seus cabelos louros. Era, realmente, muito bonita. Colocou um disco de Mozart. A música que tocava era o Concerto Para Piano e Orquestra Número 21, Primeiro Movimento, se não se enganava.

— Encontrei-me com ele, pela primeira vez, num vernissage no Museu de Arte Moderna. Ele era admirador das artes plásticas. Quando o conheci não sabia quem era, do cargo que ocupava, das responsabilidades que tinha. Era um homem encantador, acredite. A princípio encontrávamo-nos em restaurantes e depois, invariavelmente, íamos a algum dos bons motéis da cidade. Até que um dia ele começou a desconfiar que estávamos sendo seguidos, talvez até fotografados. Foi então que tivemos a idéia de alugar um apartamento na Barra. Presenteou-me com um carro, um lindo fusca azul, para que eu não precisasse ficar indo de ônibus para Salvador. Um certo dia ele me disse que estava sendo pressionado a fazer coisas que não poderia, concessões ilegais, espúrias. Descobriram nosso caso, fomos chantageados de várias formas, ameaçados. Uma delas foi o telegrama que você encontrou. Eram enviados para mim e para ele. O remetente chegou ao cúmulo de dizer que eu até poderia amenizar a situação, se também me dispusesse a “jantar” com ele. Canalha! Ele conseguiu matar o homem que eu amava. Da última vez fui a Salvador, no dia e horário que havíamos combinado. Antes de ir ao apartamento, comprei um jornal para ler enquanto o esperava. Seus compromissos faziam com que se atrasasse, eventualmente. Na primeira página a manchete: Secretário comete suicídio com tiro no peito. Saí do apartamento completamente desorientada, sem saber para onde ir, sem destino. Estendi a mão para o primeiro táxi e só consegui balbuciar: Cruz das Almas. Nunca mais retornei àquela rua. Foi isto o que aconteceu, Mateus. Espero, apenas, que respeite minha dor e não transforme minha história numa matéria folhetinesca.

De volta para casa, Mateus passou outra vez pelo fusca, já com os quatro pneus completamente vazios, pelo Chagall. Ambos não mais o incomodavam. Ao contrário, sentia por eles até uma certa ternura. Pudesse, manteria os dois eternamente ali, símbolos da maior história de amor que já presenciara. O fusca acabou sendo "depenado", enferrujou exposto às intempéries e, um certo dia, quando voltou do trabalho, não mais o viu por lá. O quadro de Chagall, no play-ground, desbotou com o passar do tempo, foi alvejado por chicletes e digitais, até se tornar descaracterizado o bastante para ser retirado da parede. Mateus concluiu seu artigo com uma frase de Bela Rosenfeld, sobre aquele quadro que ele odiara e depois aprendera a respeitar: “Através de uma janela, uma nuvem e uma mancha de céu azul chamavam por nós. As paredes brilhantemente decoradas giravam à nossa volta. Voamos sobre campos de flores, casas com persianas, telhados, jardins e igrejas”.

A edição de março da revista foi a mais bonita de todas que a editora conseguiu fazer nos poucos anos de sua existência.
Goulart Gomes
Enviado por Goulart Gomes em 07/11/2006
Reeditado em 24/08/2011
Código do texto: T284435
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