MALÁRIA
malária
para E. A. Poe e Carlos Fuentes
Você acredita estar dormindo e, entretanto, vê-se acordado: sonha estar acordado e sente-se deitado na cama, abdômen para o alto. A boca entreaberta, as pernas estiradas, os braços abertos, a coberta até o pescoço. Os minutos passam e você, acordado, cansa de estar dormindo naquela incômoda posição e resolve virar-se. Mas um corpo que dorme não obedece a um homem acordado ou... um homem que dorme não pode se dar ao luxo de mandar no seu corpo. Tenta mover um braço e não consegue, quer mudar de posição e não pode. Suas pernas parecem pesar várias toneladas e a coluna vertebral indica ter perdido seu ponto de apoio. Em um esforço conjunto tenta mover todo o corpo simultaneamente, mas a única coisa que você consegue é constatar que está aprisionado em seu próprio corpo.
Só seus olhos movem-se. Olha o guarda-roupa à sua frente, as paredes à sua volta, o seu corpo sobre a cama. Tenta, ainda, por diversas vezes, mover um braço, uma perna, um dedo que seja, sem êxito. Não lhe cansa a situação, mas a imobilidade.
Um inseto voador não identificado faz acrobacias aéreas e pousa, habilmente, em seu nariz. Visto dali, o inseto parece algo terrível, gigantesco, cheio de patas, asas e pêlos. Caminha por toda a região, ameaça entrar em uma de suas narinas, mas os seus cabelos impedem.
Frustrado em sua tentativa de espeleologista faz mais três ou quatro piruetas no ar e, após pousar algumas centenas de larvas no seu lábio superior, bate em retirada. Infelizmente.
Vem a monotonia e com ela o cansaço. Você tenta mover-se outra vez e não consegue. Só então você se lembra de gritar. Nada. A boca, a língua, os lábios não obedecem. Você consegue gemer ou, ao menos, acredita estar gemendo, mas ninguém o ouve. Para seu desespero nota que também o pulmão já adere à paralisação generalizada e o ar penetra com dificuldade. A asfixia aumenta, o suor poreja-lhe da testa, você sente que vai perder a consciência e no último momento de razão, acorda.
Só então você se lembra: a febre. Quase todas as noites ela retorna. Você, que alimentara o sonho de bamburrar, achar uma pedra grande no garimpo e ficar rico da noite para o dia, só digere pesadelos. As condições subumanas de vida, de trabalho, o desmatamento da região, os locais pantanosos: a malária.
Você se ergue da cama a custo, apanha o caneco, a moringa e bebe um pouco de água barrenta, suja, fétida. O Sol nasce e a febre seguiu a Lua. Você retorna à cama e aguarda que chegue, mais tarde, a mulher que você paga para lhe trazer as refeições.
* * *
Uma noite após a outra. Você já não quer dormir, tem medo do que possa vir a acontecer, mas o sono é mais forte. Tudo começa ao anoitecer, com uma moleza, uma dormência no seu corpo que aumenta com o frio. Surgem imagens, recordações, lembranças que vão tomando forma, ganhando vida. Você pensa na vida atribulada na selva paulista, a construção, a zoada infernal do trânsito lá embaixo, os companheiros que despencam dos andaimes, o dinheiro pouco, sempre contado, sempre faltando, a perspectiva de um enriquecimento rápido nas minas de ouro no norte. A viagem e a doença. A miséria maior. A zona, a gonorréia.
Você se vê numa gigantesca planície branca, que está acima de você e não a seus pés. Ao longo, onde deveria estar o horizonte, um ângulo, outra planície branca, esta para baixo. Você descobre, então, que não é você, mas sim uma formiga. Você é uma formiga no teto e as paredes tornam-se gigantescos vazios. Assim você se sente: um nada no nada. Então você retorna, já como homem, a São Paulo e no meio do vai-e-vem de gente, você parado, procura interceptar as pessoas (nem você mesmo sabe com que objetivo) e elas passam direto, como se você não estivesse ali. Mas você não está ali, afinal, você está deitado em sua cama em algum lugar do norte do Brasil. Mas você quer ser ouvido, quer que alguém o tire da cama e lhe leve de volta à construção. E aí começa o mais trágico: as pessoas que você toca tornam-se uma massa marrom, disforme, pastosa e inconsistente, caindo, depois, ao chão. E as pessoas vão, assim, desintegrando-se, desintegrando-se, até que você fica sozinho, cercado arranhacéus em plena rua... sozinho. Você olha para cima e vê o Sol, o Sol entrando pela janela a lhe dizer que a noite e o pesadelo acabaram.
* * *
Dias e dias passam, a certeza de que não haverá mais noites normais se confirma. Num bordel da região toca No More Lonely Nights, de Paul McCartney. Parece cômico, mas há muito suas noites já não são mais vazias. “Eles” lhe acompanham.
O sonho daquela noite repete-se. Você se assusta e tenta levantar. Não consegue. Girar o pescoço, coçar o braço, abrir as narinas e nada. Então você percebe que não era por aí. O que você quer é impossível: levantar o corpo. Você tem, sim, que se levantar.
Você consegue erguer um dedo, e depois a mão. Não sabe como, mas agora se sente muito mais leve. Desce da cama, mas não toca o chão: seus pés ficam flutuando a um centímetro dele. Olha para trás e vê o corpo estirado na cama, pergunta-se como não pensara nisso antes: se o corpo lhe pesa, deixa-o. A sensação é boa, você só não sabe como voltar a acordar, mas isto já não tem muita importância. Acordar significa sentir-se fraco, doente, padecer até que a noite e a febre voltem. Lá, não. Não há dor, nem fome, nem febre.
O corpo na cama reclama, "Volte". Mas já não tem poderes. Uma luz brilha além da janela. Você passa pela porta e sai. "Volte". Nunca mais noites vazias, continua a música na vitrola.
A mulher, ao chegar pela manhã, constata que você não vai precisar da refeição.
Nunca mais.
malária
para E. A. Poe e Carlos Fuentes
Você acredita estar dormindo e, entretanto, vê-se acordado: sonha estar acordado e sente-se deitado na cama, abdômen para o alto. A boca entreaberta, as pernas estiradas, os braços abertos, a coberta até o pescoço. Os minutos passam e você, acordado, cansa de estar dormindo naquela incômoda posição e resolve virar-se. Mas um corpo que dorme não obedece a um homem acordado ou... um homem que dorme não pode se dar ao luxo de mandar no seu corpo. Tenta mover um braço e não consegue, quer mudar de posição e não pode. Suas pernas parecem pesar várias toneladas e a coluna vertebral indica ter perdido seu ponto de apoio. Em um esforço conjunto tenta mover todo o corpo simultaneamente, mas a única coisa que você consegue é constatar que está aprisionado em seu próprio corpo.
Só seus olhos movem-se. Olha o guarda-roupa à sua frente, as paredes à sua volta, o seu corpo sobre a cama. Tenta, ainda, por diversas vezes, mover um braço, uma perna, um dedo que seja, sem êxito. Não lhe cansa a situação, mas a imobilidade.
Um inseto voador não identificado faz acrobacias aéreas e pousa, habilmente, em seu nariz. Visto dali, o inseto parece algo terrível, gigantesco, cheio de patas, asas e pêlos. Caminha por toda a região, ameaça entrar em uma de suas narinas, mas os seus cabelos impedem.
Frustrado em sua tentativa de espeleologista faz mais três ou quatro piruetas no ar e, após pousar algumas centenas de larvas no seu lábio superior, bate em retirada. Infelizmente.
Vem a monotonia e com ela o cansaço. Você tenta mover-se outra vez e não consegue. Só então você se lembra de gritar. Nada. A boca, a língua, os lábios não obedecem. Você consegue gemer ou, ao menos, acredita estar gemendo, mas ninguém o ouve. Para seu desespero nota que também o pulmão já adere à paralisação generalizada e o ar penetra com dificuldade. A asfixia aumenta, o suor poreja-lhe da testa, você sente que vai perder a consciência e no último momento de razão, acorda.
Só então você se lembra: a febre. Quase todas as noites ela retorna. Você, que alimentara o sonho de bamburrar, achar uma pedra grande no garimpo e ficar rico da noite para o dia, só digere pesadelos. As condições subumanas de vida, de trabalho, o desmatamento da região, os locais pantanosos: a malária.
Você se ergue da cama a custo, apanha o caneco, a moringa e bebe um pouco de água barrenta, suja, fétida. O Sol nasce e a febre seguiu a Lua. Você retorna à cama e aguarda que chegue, mais tarde, a mulher que você paga para lhe trazer as refeições.
* * *
Uma noite após a outra. Você já não quer dormir, tem medo do que possa vir a acontecer, mas o sono é mais forte. Tudo começa ao anoitecer, com uma moleza, uma dormência no seu corpo que aumenta com o frio. Surgem imagens, recordações, lembranças que vão tomando forma, ganhando vida. Você pensa na vida atribulada na selva paulista, a construção, a zoada infernal do trânsito lá embaixo, os companheiros que despencam dos andaimes, o dinheiro pouco, sempre contado, sempre faltando, a perspectiva de um enriquecimento rápido nas minas de ouro no norte. A viagem e a doença. A miséria maior. A zona, a gonorréia.
Você se vê numa gigantesca planície branca, que está acima de você e não a seus pés. Ao longo, onde deveria estar o horizonte, um ângulo, outra planície branca, esta para baixo. Você descobre, então, que não é você, mas sim uma formiga. Você é uma formiga no teto e as paredes tornam-se gigantescos vazios. Assim você se sente: um nada no nada. Então você retorna, já como homem, a São Paulo e no meio do vai-e-vem de gente, você parado, procura interceptar as pessoas (nem você mesmo sabe com que objetivo) e elas passam direto, como se você não estivesse ali. Mas você não está ali, afinal, você está deitado em sua cama em algum lugar do norte do Brasil. Mas você quer ser ouvido, quer que alguém o tire da cama e lhe leve de volta à construção. E aí começa o mais trágico: as pessoas que você toca tornam-se uma massa marrom, disforme, pastosa e inconsistente, caindo, depois, ao chão. E as pessoas vão, assim, desintegrando-se, desintegrando-se, até que você fica sozinho, cercado arranhacéus em plena rua... sozinho. Você olha para cima e vê o Sol, o Sol entrando pela janela a lhe dizer que a noite e o pesadelo acabaram.
* * *
Dias e dias passam, a certeza de que não haverá mais noites normais se confirma. Num bordel da região toca No More Lonely Nights, de Paul McCartney. Parece cômico, mas há muito suas noites já não são mais vazias. “Eles” lhe acompanham.
O sonho daquela noite repete-se. Você se assusta e tenta levantar. Não consegue. Girar o pescoço, coçar o braço, abrir as narinas e nada. Então você percebe que não era por aí. O que você quer é impossível: levantar o corpo. Você tem, sim, que se levantar.
Você consegue erguer um dedo, e depois a mão. Não sabe como, mas agora se sente muito mais leve. Desce da cama, mas não toca o chão: seus pés ficam flutuando a um centímetro dele. Olha para trás e vê o corpo estirado na cama, pergunta-se como não pensara nisso antes: se o corpo lhe pesa, deixa-o. A sensação é boa, você só não sabe como voltar a acordar, mas isto já não tem muita importância. Acordar significa sentir-se fraco, doente, padecer até que a noite e a febre voltem. Lá, não. Não há dor, nem fome, nem febre.
O corpo na cama reclama, "Volte". Mas já não tem poderes. Uma luz brilha além da janela. Você passa pela porta e sai. "Volte". Nunca mais noites vazias, continua a música na vitrola.
* * *
A mulher, ao chegar pela manhã, constata que você não vai precisar da refeição.
Nunca mais.