Aqueles que zelam
Caminho com passos vagarosos, percorrendo sem pressa minha morada, minha e de meus irmãos, que no momento, circundam o jardim de nosso pai. Há tempo ele não aparece, sinto que o vi uma única vez, quando ele nos incubiu de osbervar seu recém criado jardim, intervir vez ou outra, até que, num dia já determinado, desçamos lá a fim de acabar com a maldita praga que o assola. O jardim é de uma beleza estonteante, às vezes me pego a beira das lágrimas ao fitá-lo, então uma fúria rubra brota em meu peito; encarar a praga que parasita aquele paraíso me enfurece. Mas o momento de nos livrarmos dela se aproxima, e me ergo em êxtase sabendo disso. Afasto o asco de minha mente, aperto os olhos a fim de enxergar mais longe, e sorvo tudo que posso daquela criação paternal, uma brisa suave toca meu rosto, inspiro profundamente, sorrio. Fecho os olhos, atento a qualquer som que venha a alcançar meus ouvidos, o cair d´gua de uma cachoeira, o bater de asas de uma majestosa ave, o farfalhar da folhagem de uma árvore ao vento; as vozes de meus irmãos que se aproximam. Eles soam como uma mistura de júbilo e pesar, paz e ódio, como acontece todas as vezes que vão até o jardim. Cumprimento-os com um sorriso, os três que entram tirando a poeira das roupas, que se grudou a eles como carrapatos no lombo dum cavalo, e abraço-os, todo o trio.
É engraçado, sermos quatro irmãos, termos a mesma idade, não sendo gêmeos; mas, considerando nossa origem, é cabível. Pouso os olhos em cada um deles, penso em quanto os amo, sorrio abertamente, sinto que poderia arrebentar de alegria. Eles me retribuem com olhares quase idênticos, com a discreta diferença de eles me consideram o mais importante do quarteto. Nosso pai deu, a cada um, uma função, um dever, uma capacidade, e a dos três, acarreta na minha, o que a meu ver, não me faz mais ou menos do que eles.
-Então, como se encontra o jardim de nosso pai? – perguntei.
-Ainda conserva muito da beleza original – responde meu primeiro irmão – mas cada dia que passa, a podridão que aquela praga semeia, se expande.
Permaneço calado.
- Infelizmente – se manifesta o segundo – é verdade. Mas dentro em pouco, chega nossa hora, aí acabamos de vez com ela, nada de alfinetá-la como temos feito. Meu coração se preenche com uma angústia tão profunda, quando vejo aquela maravilha se deteriorando.
Mantenho-me agarrado ao silêncio.
- Acredito que todos sentimos o mesmo, irmão – diz o último – mas como bem disse, o momento de erradicar aquilo que corrói, se aproxima, segundo a segundo. E depois que o fizermos, tudo há de se regenerar.
Um meio sorriso brota em meu rosto, só meio, pois metade de mim se atêm ao amor que compartilhamos por aquilo que vemos, enquanto a outra se entristece, pelo que fazem a ele. Queria sentir apenas raiva, uma raiva absoluta, daquilo que denigre nosso jardim, nosso não, do pai, mas gosto de pensar, eventualmente, que é. Mas não consigo deixar de sentir pena daquilo que rasteja em meio à tamanha beleza, e parece ser incapaz de percebê-la, simplesmente ignorando-a, e nada, além de destruir e deturpar faz. Se pudessem ao menos abrir os olhos, mas não o fizeram, não o farão; motivo pelo qual agradeço a incumbência que e a mim e meus irmãos foi dada. Encaro meus pares, sei como se sentem, resolvo desenlaçar o silêncio, indagando ao primeiro:
- Me conte, querido irmão, como foram suas andanças por lá?
- A cada vez que por lá caminho, penso que é possível que nosso dia jamais chegue, maior que a destruição que a praga causa ao jardim, somente aquela que causa a si mesma; nunca poderia conceber algo capaz de tamanha autodestruição. Quando estive naquele local ímpar, da última vez, percebi que aquelas criaturas atacam umas as outras, quando, no máximo, mínima interferência realizo, sinto-me redundante. E elas parecem não precisar de motivo palpável, engajam-se a troco de nada, as vezes, me tenta mostrar piedade, mas estes momentos logo se dissipam, pois é notóriamente conhecido, que eles poderiam fazer tudo tão diferente, pobres e odiosas criaturinhas.
Compadeço-me com o sofrer estampado em cada uma de suas palavras, afinal, não creio que haja irmandade mais irmã do que esta que compartilhamos.
-Entendo, e nunca duvide, divido contigo tais sentimentos. Também me supreende a sede de sangue que aquelas coisas carregam, e descarregam umas nas outras, chego a ficar pasmo. E realmente, a necessidade de sua intervenção, como a de seus outros irmãos, tem sido muito, mas muito, menor do que esperávamos. Mas teremos nossa desforra, tão certo quanto as folhas ficarem douradas no outono, isso há de acontecer.
Ele parece um tanto inquieto, como eu, sofre a cada segundo de sua existência, o que nos permite manter a esperança, de ver aquele lugar ter sua glória restaurada, é saber que não tarda a chegar o dia em que brilharemos mais forte que mil estrelas. E quando este dia chegar, aquela criação voltará a ser o que um dia foi, e poderemos finalmente, repousar. Coloco uma mão no ombro daquele que acabou de falar, enconsto minha testa na dele, dividimos este delicioso momento fraternal, e me viro para o segundo.
- É sua vez, de discorrer sobre suas passagens pelo esplendoroso jardim.
Este inspira profundamente, expira devagar, um suspiro exausto, seus olhos me contam muito, sobre seu pesar, sua indignação; como o amo.
- Minha situação – diz com calma forçada – não difere em muito do que foi dito até então. Passei por lá, pensei em como poderia fazer o que é devido, mas para minha frustração, não foi preciso fazê-lo. Nosso pai criou algo próximo da perfeição, saturado de recursos e beleza, nunca me pareceu capaz, que ser algum, que lá fizesse morada, pudesse passar qualquer necessidade. Mas, por inacreditável que possa ser, aqueles seres ignóbeis e parasitas, conseguiram tamanha façanha. Não todos, alguns, ínfima parcela, se farta, esbalda, enquanto o resto míngua; em minha mente não se processa, como semelhantes, ainda que daquela sorte asquerosa, ajam desta maneira. Sinceramente, creio que não será preciso que interfiramos mais, para que voê cumpra sua parte em nossos deveres.
Ah, me inundam de orgulho estes irmãos, o zelo que têm por nossas tarefas, a paixão que sentem; o olho nos olhos pesasoros, e o seguro em meus braços.
-Todos teremos o que fazer quando a hora chegar, os quero ao meu lado, e juntos, iremos nos livrar da desgraça que assola aquela maravilha, de uma vez por todas, e então, sentiremos somente infinita alegria.
Ele sorri para mim, quando me viro para o terceiro, o vejo quase a prantear, sinto lágrimas brotando em meus olhos, as afasto com as costas da mão, embaraçado, peço com as mãos, acenando incoerente, que ele use da palavra. E o último irmão, o faz.
- Devo confessar, senti uma raiva tremenda, violenta, atroz, correr meu ser, por ver aquilo que tanto amamos, idolatramos na verdade, ser pedaço a pedaço destruído, por não poder fazer o que desejo, o que posso, o que é imperativo que seja feito. Então, resolvi fazer algo, que não fosse definitivo, algo simples, que não fosse duradouro, mas subestimei a capacidade daquelas coisas de se destruírem. O que era para ser passageiro, de simples resolução, tournou-se epidemia. Queria apenas assustá-los, não era nada para se espalhar, eu reitero, a fim de defender-me, que era de fácil resolução, mas parece que eles adoram sofrer; se delicíam com o sofrimento de seus pares, criaturas odiosas. Quero que me perdoe, pois foi meu erro de cálculo, que acarretou em tanto trabalho para você. Fui incapaz de conter-me.
Não podia repreendê-lo, mesmo porque, não é este o meu papel, sendo um igual, ainda que me vejam de outro jeito; e também, já cometi deslizes, excedendo, tal como ele o fez, meus deveres. Apenas o fito, meus olhos demonstram que não será dita uma única palavra de desapreço, mesmo porque, todos tivemos nossos momentos. O dia se aproxima do fim, é hora de recolhermo-nos, abraço os três tão amados irmãos, que se dirigem aos seus aposentos, como também o farei.
Os vejo indo, enquanto a escuridão se arrasta janela adentro, vejo as sombras deslizando por minhas mãos, parece que poderia segurá-las. Ouço seus passos ecoando, mais parecem arrastar-se, sua exaustão, tal como é minha, é palpável, um deles solta um gemido doloroso enquanto se deita; as vezes enquanto dorme, os escuto chorar desacordados, lamentos inconscientes, e tento imaginar o que meu lábios proferem durante um sono que não é repouso. Ainda encaro a janela, vejo as luzes dos atros se ascenderem, uma a uma a princípio, em seguida várias parecem surgir, como belos vaga-lumes em um lago escuro. Alço minha mão ao céu feito de negrume, como se pudesse aconhegar uma daquelas luzes cintilantes em minha palma, sorrio do sonho infantil. Olho o breu se derramar pelo jardim, que mesmo em àquela escuridão inclemente, parece brilhar, chama numa noite sem lua, os olhos de um lobo numa nevasca ao anoitecer, é simplestemente, a coisa mais bela que jamais existiu. Aceno um até logo para ele, me apóio no beiral da janela, meu rosto fita o chão, não pareço ter forças para manter a cabeça erguida, mas é preciso, e o faço. Deixo aquela última imagem do dia gravar-se em minha memória, a abraço como faria a um filho, mas nãoé meu dever ter um, então jamais o terei. Meus pés se arrastam até meu leito, cerro as pálpebras, o ar gélido da noite escura infla meus pulmões, me preparo para outro dia de espera, como este que se foi, já é um a menos, o pensamento aquece meu coração, começo a imergir na inconsciência.
Ah, quase ia esquecendo de apresentar-me, tremenda lacuna de etiqueta. Meu nome é Morte, meus irmãos se chaman Guerra, Fome e Peste, e breve, muito breve, cavalgaremos até vocês, patéticas criaturas.