Ela tinha um nome tão estranho quanto eram seus olhos amarelos: Aluá. Porque a chamaram assim, não sabia. Carregava poucas lembranças em seu embornal de vida, o que a tornava infinitamente triste quando sentia aquela tristeza de não saber de quê ou de quem. Nesses momentos, o rosto sem rugas anoitecia e os olhos, mais amarelos ainda, tomavam ares de lua. E lua cheia. Talvez daí viesse aquele nome misterioso, que carregava o estigma de um céu perdido em algum universo longínquo.
Quase nunca falava. Orbitava entre fogão, panelas, pratos e pia, dourando alho e cebola, perfumando a casa dos vizinhos com ervas e condimentos recheados de prazer. Dava aquele frio na barriga nossa de todos os dias, à hora das refeições, que nos alimentávamos primeiro de estrelas e depois, do manjar. Era uma deusa. Uma bruxa com mãos de fada. Uma Ceres recriada por um outro Zeus, destinada a tirar o melhor de sua colheita para ingênuos mortais escravizados.
O encantamento era tanto que passou-se a evitar qualquer pergunta. Que importava, afinal, de onde viera? Ninguém estranhava mais aquele nome meio sortilégio, com gosto de fantasma conhecido, carregado de água fervente, amido e mel. Ninguém mais reparava nas sombras que escureciam seus olhos amarelos de leoa faminta à procura das crias, roubadas pelas florestas do mundo, pelas savanas da vida, pelos desertos do destino.
Aluá sofria de outra fome que não aquela que saciava com seus temperos ardilosos. Fome pacificada talvez pela esperança de um dia, uma noite, um meio de tarde de inverno. Uma fome voraz de viver a primeira vez. De quê, não sabia. Dia a dia guardava em seu embornal os acontecimentos, mantendo com obstinação seu olhar em algum lugar onde não se via nada. Por mais que conversássemos soletrando afeição, transcrevendo afeto, declamando amores. Para ela, éramos textos incompreensíveis, impossíveis de qualquer leitura.
Um dia, minha mãe chegou em casa com um vaso de violetas. Aluá tomou o pequeno vaso e mirou a única flor que se mostrava, roxo azul, em sua altivez de violeta. Delicadamente passou a ponta dos dedos pela pétala aveludada, buscou seu cheiro e saiu como se levasse o seu primeiro mundo em mãos. Nunca mais vimos aquele vaso pela casa. Naquele dia, acho que ela construiu seu primeiro segredo, seu primeiro meio passo de vida, pois alguma coisa mudou em seus olhos amarelos. Levavam mais tempo, talvez, para escurecer. Como se seu sono se tornasse mais curto. E passou a se prender mais em Chara, nossa cadela mestiça. Estreitou distâncias lhe oferecendo pequenos petiscos com sua marca bem à vista: cheio de sabor e cheiros. Foi uma longa e quase interminável conquista. Não entre ela e a cadela, que já se apaixonara perdidamente, mas entre ela, Aluá, e uma outra dela, que ponteava feito um botão de violeta, enrolado em seu próprio caule. Dia foi que criou coragem e tocou os pelos macios e dourados da cadela, que o mais rápido que pode se jogou aos seus pés de pernas abertas, entregando-se à curiosa fome de Aluá. Ela trocou então, seu rotineiro mutismo pelo chamamento: Chara!
Um sossego, uma quietude que se desmanchava em garantias, em provas juradas de afeto, começou a visitar com mais frequência aqueles olhos amarelos. Eu podia jurar que a nossa Aluá, como eu a chamava, aprendia a linguagem singular de um certo amor. Eu não estava errada. Foi-se adulterando aquela lua cheia, enigmática, linda, mas tão distante quanto um tempo esquecido. Agora, a lua era nova, refletia verdes canções.
Para Aluá, que não sonhava com luas, não conhecia as cores do arco-íris, não decifrava outros sinais senão aqueles que batiam dentro do próprio peito, amanhecia o dia, em um novo continente.