Da nobreza da cavalaria
Nobre e galante cavaleiro, cavalgando belo e altivo corcel, manobra com presteza por entre interminável quantia de desfalecidos guerreiros, tal como é de haver em um campo de guerra, passada a grande escaramuça. Procura com olhos pesarosos as armas do póstumo irmão, bravo herói, que de heróico modo veio a cair. Se depara, em sua infrutífera busca, com nefasta criatura, que nos restos mortais, encontra sustento. Não é abutre, cachorro, coiote, ou qualquer ser, desta sorte carniceira; é homem, ou refugo da humanidade. A busca deste segundo, homem atarracado, de hedionda feiúra, se mostra várias vezes mais feliz. Apanha dos mortos, o que lhe apraz, o que valor possui, e arremessa na pequena carroça, que seus esguios braços carregam, até que o peso torne-se muito, e sua força pouca.
-Parai! Filho de cão, flagelo, arremedo de gente, criatura nojenta, feita de fel!
-Meus nobres cumprimentos a ti também, nobre e esplendoroso ginete.
-De mim não ouses zombar!
- Jamais o faria, ó nobre, pois nobre o és, e é meu dever, como carrapato no lombo do mundo, aguentar quaisquer insultos que, por injustos sejam, atiras contra mim, e ainda assim, dar-te as mais calorosas e belas boas vindas.
-Bom que saibas vosso lugar. Ordeno que cesses tamanha profanação, deixai em paz os mortos e vossos pertences. E, por mais que abomine, tereis de tocar, uma vez mais as armas que roubaste, ao depositá-las nos exatos locais dos quais as tiraste.
- Ora, grandessíssimo cavaleiro, não mal me entendas, suplico-te. Mas vossas ordens me são impossíveis acatar.
- Quê?! Achei que sabias tu, refugo pestilento, teu lugar e o respeito que me deves!
- Meu caro lorde, de meu lugar estou ciente, jamais, por momento que fosse, faltaria com respeito para com vossa montaria, de exuberante beleza, que é mais que jamais serei, quanto mais para com vossa nobre pessoa. Mas reitero, respeitosamente, vossas ordens me são impossíveis acatar.
- Explica, antes que a raiva turve meu raciocínio e que meta-te a espada ventre adentro.
-Então escutai, se te apraz, cavaleiro de nobre porte. Não posso fazer o que pedes, todo respeito dar-te-ei, se pedires como mostra de tal respeito, que me ajoelhe, e minha face enterre na lama, o farei. Agora, obedecer-te, não posso, pois de outro sou vassalo, que serve ao rei.
-Vejo que conheces dos códigos e leis, que a cavalaria e a vassalagem, regem.
-Ensinaram-me, o que me era preciso saber, folgo em ver que entendes, o que me cabe, ou não, fazer, lorde de outros.
- Sim sim, mas diga-me, como pode homem, dotado de saber e espírito, inteligência e alma, realizar assaz desprezível ofício, de furtar despojos de mãos que mostram-se incapazes de defesa?
- Mãos que não se defendem, bocas que não reclamam, corpos que de casca não passam, que uso fariam de armas que aqui jazem? Tudo que faço, cavaleiro que desperdiça preciosas palavras com um traste como este que humildemente te fala, é dar às armas, chance de se assentarem em novas e poderosas mãos, ao invés de aqui, pó se tornarem.
- E recebes por isto, não recebes?
- Todo serviço prestado merece compensação, nobre senhor.
- Que seja, mas onde está a honra em chafurdar nestes campos de morte, e privar pobres soldados de vossas derradeiras posses?
- Nobre senhor de alta casa, são de vosso possuir, a honra, vassálos, terras, poder, conforto, proezas, herança e tantas outras bençãos. Minhas posses, são a obediência, o labor, o sofrer, filhos famintos, servir, calar e tantos outros pesares. Faço o que me é possível, a fim de aliviá-los o peso.
-Certo, então vou-me, ó pobre coitado.
- Que vossas alegrias multipliquem-se ao longo de longa vida.
- Espera! Aquela espada, de cabo dourado, era ,meu irmão quem a manejava, és minha por direito de berço!
- Senhor, visto que está a arma, em minha carroça, e alma alguma a revindicou enquanto a depunha nesta caixa de madeira que meus cansados braços puxam, sinto muitíssimo em dizer-te, que junto aos pesares, ela é de minha posse.
- Dá-me a neste instante, ou caíras trespassado antes que soltes outra baforada de ar fétido, carregado de imprecauções!
- Acalma-te, vossa senhoria, peço como um homem pediria a um leão que a fera apiede-se, que me respondas algo.
- Testas minha paciência, rebento de meretriz! Mas vai, não sou como leão ou fera que seja, dar-te-ei curta piedade. Perguntas.
-Em justas, não são somente nobres cavaleiros, os dotados do direito de baterem-se?
-Exato, estás satisfeito?
- Acalma-te, grande cavaleiro. E na guerra, nobres não degladiam com plebe, correto?
- Continuas com razão, mas atenta-te, enrolar-me de nada alivia-te o castigo.
- Então, perdoa-me a demora, a nobreza não o faz, por serem nobres em demasia, e não rebaixarem-se até o nível em que, indignos como este que vos fala, encontram-se?
- Estás certo, outra vez mais.
-Então caso, ainda que imbuído de razão, passasse vossa afiada espada pela minha insolente garganta, tornar-se-ia camponês, plebe, rota e rasgada como eu.
- De certa forma, talvez, mas cá estamos somente os dois, excetuando os mortos, que diferença haveria de fazer?
- Me inunda de prazer, ver que carregas a lendária nobreza dos cavaleiros, abraçada com honestidade e pureza de intento.
- Tua boca só expele veneno, aceita o fim calado, com dignidade que nunca teves.
-Se lutastes comigo, seria como plebeu, e um plebeu, que de outro priva da vida, é como assassino taxado, e tem por destino certo, tão certo quanto sapos hão de coachar, a forca.
- Já disse a ti, somos neste campo os únicos a verter ar pelos pulmões, ninguém há de sabê-lo.
-Aí que te enganas, mira aquela colina, vê o franzino rapaz, montado em sofrível pangaré? É meu filho.
- E?
- E tem olhos de águia, o jumento é veloz, não o alcançarás.
- Como pensas, tolo, que saberás vosso ignóbil rebento, quem sou?
- Não ostentas tu, vistosos brasões de vossa família, em vosso escudo e na manta de vosso cavalo?
-...
- Se quiseres, podes reaver a espada de vosso falecido irmão, sem ir à forca. É meramente uma questão de quanto ouro carregas em vossa algibeira.
-Velhaco! Pega tudo, dá-me a arma.
- Resolvido, sua ela há de ser, mas antes, perguntar-te-ei algo, para o que não espero resposta. Não há momentos em que dói, estar atado a tão nobre código de nobreza e cavalaria?
“E devo confesar-te, quando precisamente listei vossas bençãos e meus pesares, ocultei algo. São vossos , também, a retidão, a verdade e a mansidão, e minhas, o ludibriar, o instinto, e a liberdade. Diga, nobre cavaleiro, não seria extasiante, de amarras éticas, se ver liberto?”
E calado, foi-se o exuberante, e derrotado cavaleiro.