OLHOS NOS OLHOS

Primeiro eu vi um homem: magro, alto, meio corcunda e de revólver em punho; o revólver estava na altura do peito dele. Tentei me esconder. Precisava averiguar para saber o que estava acontecendo.

Botei a cara na rua, me expus mais. Ele não ia olhar para mim, parecia muito ocupado. Eis a surpresa: ele estava com o revólver mirado no rosto de outro homem, bem mais baixo do que ele, meio gordo, calvo, que parecia muito amedrontado, verdadeiramente em pânico. Eram mais ou menos 14h.

Não sei qual dos dois estava mais amedrontado. O medo dava o tom da cena. A arma não estava dando força ao homem; parecia ser pesada de mais em sua mão. Era ela a força em si mesma; o homem parecia ser um objeto do seu poder. A arma tinha vida própria e o dominava. O homem baixo parecia sentir a mesma coisa que ele, o que o amedrontava ainda mais: o revólver poderia agir na mão daquele covarde e matar o outro covarde. “Quando não se tem coragem, a arma faz a diferença”.

Fingi ser um homem corajoso e, enfim, me expus totalmente. Sempre fui um homem muito curioso e aquela cena estava fazendo minha mente coçar.

- qual o motivo da desavença?

Não foi uma exposição tão grande assim. Não dava pra saber qual dos três era mais medroso. Não dava para saber qual dos três era mais corajoso. Eu era o mais idiota. Talvez o único idiota naquela encenação. Não sei bem por que sempre agi feito idiota. Era a própria encarnação do personagem dostoieviskiano, sem a sua imponência.

- quem é você?

Gritou o magro alto, de arma em punho, sem olhar para o lado.

- não vê que estou com um covarde na mira? Se quiser morrer também, venha pra junto dele.

- qual o motivo da desavença?

- você não tem outra pergunta não, rapaz?

Pergunta irado o covarde que estava sendo ameaçado, como se senhor da situação. Os dois se fitavam em uma cumplicidade latente, intrigante. A covardia os unia pelo fio da força do olhar. Nada mais demonstravam. Era uma ligação tão profunda que os tornava objetos. Abjetos. Excremento. Não significavam nada diante do olhar, do seu encontro.

- isso não lhe diz respeito. Deixe-nos em paz.

As palavras parecem perder o sentido quando estamos com medo. Ou quando somos usados pelo poder. Não era o meu caso. Eu estava com medo; corajosamente demonstrava isso. Talvez a linha tênue que separa o medo da coragem estivesse bem nítida naquele momento, pintada com cores vibrantes. Não tinha como decifrar o que estava acontecendo. “Não?” A que paz ele estava se referindo? “Desde quando alguém está com uma arma apontada pra cabeça é está em paz?” “a que paz ele se referia?” “E existem tipos de paz?” Pensei até se havia plural para a palavra paz. “Não”. Paz não é uma situação ou algo mais profundo?

- qual o motivo da desavença?

Eu precisava saber! Ninguém coloca uma arma na cabeça de outrem sem motivo. “...coloca sim. E como coloca”. Mas eu precisava saber o motivo. Ademais, era uma tática: se os dois ficassem com raiva de mim, iriam esquecer o que os levara à briga. E provavelmente me matariam; transferindo para mim a ira que estavam sentindo. A morte às vezes pode acabar com uma briga; a cumplicidade em uma morte pode tornar inimigos próximos, até amigos pelo mesmo pecado. Como políticos nos conchavos das campanhas eleitorais.

- quer fazer o favor de calar a boca? Venha você morrer em lugar dele, Jesus Cristo.

A arma parecia está mostrando seu poder. Fiquei ainda mais intrigado. Por que Jesus Cristo?

- por que Jesus Cristo, amigo? Você é cristão? De que religião você é? Jesus é paz ou é guerra? O que significa Jesus Cristo para você?

Não sei mais se estava usando uma tática ou se eu era mesmo um idiota tentando brigar contra os moinhos de vento. Ao menos consciência disso eu não tinha: de nenhuma das duas coisas. Ainda não tenho. Mas achei mesmo estranho que alguém ligue a minha atitude à de outrem.

- vá à merda! Você e a religião, seu idiota! Nunca leu a Bíblia não? Não sabe que Jesus morreu na cruz pra livrar o homem do pecado? Nunca ouviu um padre, um pastor, um presbítero, um bispo ou o diabo que o carregue falando sobre Jesus? De que país você é? Vá pra puta que o pariu e nos deixe, o momento é nosso.

Fiquei mais intrigado ainda. Também fiquei muito feliz, não sei bem o motivo, mas logo comecei a rir. Ele falava, falava, sem olhar para mim, sem ter a curiosidade de conhecer o rosto de quem estava tendo uma conversa com ele. Só olhava para o rosto do homem que estava cheirando o cano de seu revólver. Como um cirurgião a pedir as ferramentas aos auxiliares.

Eles não deram a mínima para meu riso. Ambos estavam compenetrados com aquela cena que, apesar de não poder ser denominada, poderia fazer parte de um livro de Sartre ou de um Faroeste; era intrigante. E hilário também. Eu já estava perdendo a paciência. Acheguei-me de vez. Estava há um metro da cena. Parecia um diretor de cinema, tentando enquadrá-los no melhor ângulo. Demonstrava cada vez mais minha idiotice.

Eu olhava para os dois, que não olhavam para mim, querendo descobrir algum significado para a cena. Qual o objetivo? Por que ela está acontecendo? Eles não davam a menor importância para mim. Fiquei com raiva. Queria eu ter aquele revólver em minhas mãos e mataria os dois. Sem pestanejar. Sem dó nem piedade. Depois mijaria no rosto deles. Imbecis!

Mas nada dizia. Eles continuavam a se olhar como um casal apaixonado. Olhos nos olhos. Um se alimentava dos olhos do outro; e assim continuavam vivos naquela peleja. Eram dois amigos sem compreender o sentimento que existia entre eles, que resolveria logo as desavenças. Naquele momento eu inexistia. Era só um corpo a fazer sombra no rosto do homem sob a mira do revólver.

Eu olhava para um, para o outro; para um, para o outro: e nada. Minha sombra no rosto do homem sem revólver irritou grandemente o alto e magro, como se tivesse sido tirado dele sua alimentação. Sem tirar o revólver do rosto do homem baixo, ele olha para mim e grita a plenos pulmões:

- o que você quer, idiota?! Pelo amor de Deus, deixe-nos em paz! De que literatura saiu esse idiota? De que lixo esse veio?

Volta-se para os olhos do outro. Eu, apesar de não ter me abalado com seu grito, dei um passo para trás, mecanicamente, trazendo de volta sua fonte de energia.

- mas por que você fala tanto em Deus? O que Ele é para você? Qual o significado de Deus em sua vida?

- nada, nenhum, idiota! É um vício que aprendi com meu pai. Vícios têm que ser repetidos, se não, não são vícios.

O outro nada falava, mas estava igualmente irritado comigo. Apenas ele não tinha o poder nas mãos para me insultar. A ira não mudava seu olhar: não perdia, em momento algum, o movimento dos olhos do outro. A fonte de alimentação poderia levar à morte. Era intrigante. E eu era inútil. Nem o ódio deles eu conseguia atrair. Só o desprezo.

- eu devo ser um idiota mesmo.

Disse mais para mim mesmo. Fiquei envergonhado por ter pronunciado aquelas palavras para alguém ouvir. Senti que o tom dos olhos deles mudou um pouco, mas logo voltou ao normal. Não era uma tática minha. Era uma constatação: eu sou mesmo um idiota. Ser idiota para mim era um vício que aprendi com meu pai. Não há explicação para os vícios. As lições aprendidas na infância não morrem jamais. E eu aprendi a ser idiota com meu pai: nunca vi ninguém tão idiota quanto ele.

- eu sou mesmo um idiota! Sabem o príncipe de Dostoievski? Sabem Dom Quixote? Eu sou um idiota. Só que sou real, não venho de literatura nenhuma.

Estava irritado comigo. Não sei bem porque o Idiota e Dom Quixote vieram à minha mente naquele momento. Talvez eu estivesse delirando ou retomando a consciência, sei lá. Eu estava irritado. Apenas o problema era comigo. Todo homem irritado é um idiota. “Mas eles me chamaram de Jesus!”

Quando olhei para eles, agora eles é que inexistiam para mim, ao menos não tinham mais importância nenhuma, senti que o tom em seus olhos havia mudado de fato. O quadro continuava o mesmo: um com um revólver apontado para a cabeça do outro.

Os dois choravam. Fiquei inquieto. Senti-me com o espírito de René Descartes. Quanto mais estudava aquela situação, mais descobria que menos sabia. Acho mesmo que cada vez entendo menos a alma humana. Talvez nunca tenha lido Freud. Talvez. “Estou ficando bobo, um verdadeiro idiota”. O que mudara? Eles voltaram a ter importância. O quadro era o mesmo. Eles é que eram diferentes, que estavam diferentes. Estavam chorando. Estavam chorando profundamente. Os olhos estavam cheios de lágrimas que não queriam limpar seus rostos.

O sol entrou nas nuvens. Eu estava comovido. Alheiamente comovido, e agora, mais intrigado do que nunca. O sol voltou. Eu dei dois passos pra trás, não sei por que motivo. O homem que estava sob a mira, ainda com os olhos cheios de lágrimas, descontroladamente espirrou, fechando os olhos e perdendo por um breve instante, a mira dos olhos do homem do revólver.

Descontroladamente, como a defender sua fonte de alimentação, o outro puxa o gatilho do revólver. Foram cinco tiros. Um atrás do outro; sem pestanejar.

O corpo caído, eu, sem saber bem o que fazer, e o outro de joelhos sobre o corpo, chorava em alta voz:

- por que tiraste de mim o espelho que me fazia viver, miserável! Forte foste; eu, covarde; foste fraco, eu, senhor. Foste livre. Até o fim da vida foste livre. O que será agora de mim? A única luta digna que travei na vida, acabou; não tenho mais adversário, sou o mesmo inútil de sempre. Como poderei ser importante se não tenho adversário para lutar?

Abraçado ao revólver, deita-se sobre o corpo, botando a cabeça em seu peito.

- agora dormirás em paz, livremente. Ninguém mais te aborrecerá. Nem teus filhos, nem tua mulher, nem tua mãe. Nem minha mulher que te amava tanto. Nem a vida. Ninguém. Nem o amor. Eu reconheço teu amor por ela. Agora és, definitivamente, livre. Dorme sossegadamente. Ela te embalará em seus sonhos. Teus beijos serão sentidos em seus lábios sem a intromissão hipócrita da sociedade. Sem a minha intromissão. Dorme. Ela será eternamente tua, eu não a tocarei mais. Não sou mais digno. Sem adversário não há luta. Ela me é agora um instrumento proibido. O amor proíbe de tocá-la; o teu amor por ela será uma lei divina, uma forte muralha que jamais poderá ser derrubada. Deus. A lei do amor. Dorme em paz.

Começou a cantar uma canção de ninar. “Eu era um inútil que não sabia o que fazer. Não tinha vida própria, minha vida era ela. Também não era notado”. Os inúteis nunca são notados. Alheiamente, como se a mim mesmo, perguntei:

- por que Jesus Cristo? Deus é importante para sua vida? Só a inconsciência mata, o amor não mata. Não é isso? Por que Jesus Cristo? Que lei divina?

Ele virou a cabeça para o lado e, dentre a canção de ninar, falou:

- dorme em paz, amigo; dorme em paz. Hum, hum, hum...

Ergue o corpo e fica ajoelhado olhando para ele que está caído como a fazer uma prece.

- eu fui um covarde, desde o começo. Não se pode privar o ser humano do verdadeiro amor. Fui um idiota.

Olhou o revólver como sendo sua salvação e puxou o gatilho, caindo para trás.

Eram 16h.

INALDO TENÓRIO DE MOURA CAVALCANTI
Enviado por INALDO TENÓRIO DE MOURA CAVALCANTI em 09/03/2011
Código do texto: T2836534