APENAS UM CORPO

Eu não sabia pensar, não tinha raciocínio lógico. Inerte olhava para um corpo, só um corpo que não tinha mais história, nem memória, nem brilho nos olhos. O brilho em seus olhos era sua principal marca. Sua boca perdera aquele sorriso que, mesmo quando estava com raiva, saía libertador, puro... Era apenas um corpo agora que eu olhava sem vida. Eram dois corpos sem vida. Éramos dois mortos de lados diferentes.

Quanto amor! Quatro anos que eu transferi para ele, desde que sua mãe morrera. Éramos tão iguais... Não poderíamos mesmo viver ao mesmo tempo.

O filho do amor. Meu último amor. Depois que sua mãe morreu, nunca mais estive com mulher alguma. Para ele foram transferidos os sentimentos, as energias, as emoções. A minha vida. Ele era minha vida.

...Ali estava seu corpo e era como se não fosse seu. Eu olhava também com indiferença; provavelmente porque eu não estava lá. Era um corpo aparentemente vivo, olhando para outro corpo sem vida. Eu era abraçado, apertado contra corpos, porém nada daquilo tinha significado para mim; nem mesmo olhava para saber quem estava a me consolar.

Era a indiferença com a indiferença. Nada mais indiferente do que um corpo sem vida. Naquele momento, ele era um deus dormindo enquanto o mundo caía sob seus pés. Um deus sem alma. “Deuses têm alma?” Os deuses dormem enquanto os humanos brincam de viver, brigam por viver.

Minh’alma estava indiferente a todas as confabulações. As lágrimas, às vezes, desciam sem razão, sem brilho, como se não viessem de fonte alguma. Mecanicamente escorriam com os abraços e apertos que eu recebia. Pareciam densas, como se trouxessem sangue transparente.

Não me sentava. Não me virava. Estava teso com os olhos voltados para aquele corpo. Agora eu era um telão a passar a história.

Alguém conseguiu fazer com que meus joelhos fossem flexionados e me botou em uma cadeira quase no mesmo lugar em que eu estava. Era como se pegasse num telão de tal maneira que a imagem não se mexesse.

Ali estava eu: um homem maduro, já aposentado, casado, apaixonado por uma mulher jovem, bem mais jovem do que eu. Trinta, quarenta anos? O mundo caindo sobre mim; a sociedade, os filhos, a religião. Mas o amor já havia preenchido um espaço nunca antes ocupado. Tudo larguei. Estava se dissolvendo a mentira, a alienação. Sofri com o desprezo dos filhos, dos amigos sociais, dos irmãos de fé; mas amei. E o amor me fortaleceu. Fui viver com meu amor. Todos contra mim, eu assumi o amor da minha vida. Foram dias felizes. Não pela primeira vez que transamos, porque foi nervoso e parecia frio... Não por ter sido a primeira vez dela, que sempre sonhara casar virgem, mas pelo amor que verdadeiramente existia. Logo eu, que sempre achava que tudo girava em torno de interesse.

Lá estava o corpo do filho do amor. Claro que senti muito a morte de sua mãe, mas não podia me dá ao luxo de me entregar à tristeza, de enlutar todo o meu viver, quando ela tinha deixado a felicidade em meus braços. Agora eu poderia me entregar à tristeza, eu poderia morrer para esse mundo hipócrita que me desprezara.

Chegaram meus filhos, me abraçaram e choraram. Eu não os reconheci. Pelo reflexo de seus rostos no vidro que tampava o caixão, do alto da minha indiferença, de minha inexistência, pensava que o choro era de felicidade por menos um no testamento. Quão cruel estava me tornando.

Eu o criei com tal dedicação, que a babá contratada tinha pouca serventia. A dispensei e fiquei com a secretária do lar. Os cuidados com ele eram todos meus. De minha felicidade cuidava eu.

Apenas um corpo, fechado em um caixão de madeira de lei, estava em minha frente. Apenas um corpo.

Os únicos movimentos que fazia eram sentar e levantar. Há horas não tinha saído dali. Quando precisava ir ao banheiro era da forma mais mecânica possível: sem olhar para ninguém, sem olhar para mim, sem dá nenhum sinal. Saía, fechava a porta do banheiro, fazia o que precisava ser feito, lavava as mãos e o rosto, enxugava-os na toalha que ficava ao lado da pia e voltava para o mesmo lugar de antes.

Estava chegando a hora de o corpo ir para o cemitério. Isto não tinha importância. O tempo passava mecanicamente e, mecanicamente, eu saí e fui até o quarto dele. Ao chegar lá, fechei a porta. Não queria testemunha nesse último encontro com minha história. Não queria que meus acusadores me acudissem em meu sofrimento, não daria oportunidade de eles se redimirem. Que morram com seus remorsos. Já me mataram uma vez.

A conversa na sala havia aumentado o tom, tinha barulho. Nada daquilo podia desviar a minha atenção. Sentei na cadeira do papai, onde todas as noites contava histórias para ele dormir, ele sempre dizendo conta mais. Ele ouvia histórias maduras, era um menino muito inteligente, iria ser muito mais esperto do que os parasitas de meus outros filhos; eram O Menino do Dedo Verde, A Revolução dos Bichos, O Pequeno Príncipe, alguns contos de Fadas. Ele chorou quando ouviu que Tistu subiu para o céu naquela escada feita de árvores, mas entendia perfeitamente o sentido da história. Com o resultado do pobre do Cavalo que queria se aposentar, depois de tanto trabalhar... parecia um político de esquerda quando havia do que reclamar.

Fechei os olhos por uns segundos e, ao abrir, pareceu-me tê-lo visto na cama. Tudo aconteceu tão rapidamente que me deixou meio louco, procurando-o, olhando para todos os lados, indo até o seu banheiro, voltando rapidamente para o quarto... nada. Ele não estava mais lá.

Sentei-me novamente. Fechei os olhos, mas ele não reapareceu. Acordei em choque, agora estava diferente; era uma alienação viva.

Ao voltar para sala, todos fizeram silêncio e baixaram as cabeças como se sofressem. Olhei para todos (não o havia feito ainda) e falei também pela primeira vez:

- Não sei por que vocês vieram até aqui, nem me interessa sabê-lo agora (todos se olharam). Não gostaria que ninguém me acompanhasse até o cemitério, para o enterro do meu filho. Irei só com ele. Um morto fará companhia a outro morto. Irei no carro da funerária. Não quero ninguém no cemitério. Ninguém. Quando for colocá-lo na sepultura, na sua morada, até que todos os ossos estejam livres da carne que os guardava, quero está só. Agora está na hora de partirmos. Obrigado pela presença de todos. Eu preciso que todos saiam; preciso fechar a casa.

Dito isto, houve em certo murmúrio, descontentamento. Algumas pessoas tentaram falar comigo, sem sucesso. Aos poucos foram saindo: uns xingando, outros chorando... Meia hora depois, estava eu sozinho com o corpo do meu filho.

O tirei do caixão e dei o último banho, como fazia sempre: antes, ele ria muito tomando banho, quando o sabonete caia em seus olhos ele tomava um susto, depois ria frouxamente; era um sorriso musical, belo; desta vez não fez nenhum movimento. O vesti, o perfumei, o beijei, o recoloquei no caixão; botei flores e, antes de botar a tampa, lembrei-me de um brinquedo que ele gostava muito, que havíamos comprado juntos em uma feira de arte; era um ursinho de madeira.

Botei o ursinho junto do seu rosto, o beijei pela última vez e tampei o caixão.

Fechei todas as janelas da casa, desliguei as luzes e fui abrir a porta (esse era o sinal para o homem da funerária). Ao abrir a porta, percebi que havia muitos curiosos lá fora. Não os encarei. Não importava a presença deles. Eles não existiam para mim. Não sei se eram pessoas conhecidas ou curiosas. O homem botou o carro no lugar combinado. Peguei o caixão, enquanto ele tirava a chave da porta para botá-la do lado de fora.

Saí com o caixão nos braços. Ele fechou a porta e colocou a chave no bolso do meu paletó.

As pessoas se aproximaram um pouco, porém não atrapalharam o ritual pensado por mim.

Entrei no carro, o motorista já o tinha ligado. Não olhei para trás. Saímos rapidamente.

Pelo retrovisor notei que muitos ainda tentaram nos acompanhar. “Vamos ao cemitério Rosa dos Ventos, na cidade vizinha. Lá tudo já está acertado”. Foram minhas únicas palavras com o motorista. Não sei mesmo porque pronunciei aquelas palavras, ele já sabia de nosso itinerário.

Estava me sentindo profundamente triste. As lágrimas agora desciam vivas. Eu não deixava sair nenhum som. Qualquer som naquele momento seria um sacrilégio à memória de meu filho. Gostaria imensamente de me abraçar com alguém, chorar, chorar... O motorista, às vezes, olhava para mim, mas não fazia comentário algum. Não fechei os olhos, não olhei para o lado; a dor profunda que sentia parecia está ligada a um ponto na frente da estrada. Eu não pensava em nada mais. Não havia raciocínio algum. Não demonstrava cansaço.

Chegando ao cemitério, a cova já estava pronta; eu combinara não perder tempo algum. Tudo fora decidido ainda no hospital, quando eu ainda estava vivo; e esse acerto vinha automaticamente. A vida conduz a morte. Eternamente.

O carro da funerária parou o mais perto possível da cova. Tirei o meu filho do carro e o levei para a cova.

Dois homens estavam à beira da cova. Eu o coloquei na cova e eles jogaram a terra. De longe, o motorista me observava. Os homens, que estavam entupindo a cova, de vez em quando olhavam para mim.

Eu estava inerte; tal qual quando estava olhando para o caixão em minha casa. Meus braços estavam doendo; minh’alma estava profundamente dolorida. Naquele momento as lágrimas banharam meu rosto; as enxuguei com as mãos. Não olhei para os lados. Era um homem de pedra, de ferro.

O processo fora terminado. Voltei para o carro, que me deixou em um hotel à beira-mar que ficava a uns trinta quilômetros dali, já em outra cidade.

Fiquei em um quarto no segundo andar, cuja janela dava para a praia. Pedi para não ser incomodado. Dormi a noite toda. Quando acordei, nada tinha mudado em minha memória. Abri a janela e fiquei longo tempo olhando o mar. Pedi café, depois fui dá uma volta pela praia. “Meu filho gostava muito de andar na praia”, pensei. “Ele tentava pisar exatamente onde eu pisava. Suas pernas não alcançavam... nem jamais o fariam. Era o fim dele; o meu também”.

Não voltei mais para aquela casa. Estava apagando uma história. Iria embora para um lugar distante sem deixar rastro. Iria embora para lugar nenhum. “Serei um viajante em busca de nada, fugitivo da memória que nunca me abandonará”. Seria um rosto indiferente em meio a tantos rostos indiferentes. A dor, sei que nunca me abandonará, não é possível. Ela será minha companheira. A única lembrança de vida a existir em mim. Não mais amarei, nem a mim mesmo, nem a ninguém. Nem a Deus; Ele está enterrado naquele caixão.

Naquele dia choveu e eu pensei em plantar umas flores especiais sobre a cova do meu filho. O mar estava triste, sem ondas; eu estava triste, sem vida. Passávamos longas horas a nos olhar.

INALDO TENÓRIO DE MOURA CAVALCANTI
Enviado por INALDO TENÓRIO DE MOURA CAVALCANTI em 07/03/2011
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