Capítulo 4, Versículo 7

"(...) Na verdade, não sei muito sobre o inferno. Nem tenho certeza de que existe. O Maestro nos mantém em enclaves. Não devemos saber o que não precisamos saber. Para manter nosso moral, portanto, somos lembrados constantemente de quanta pretensão cósmica há nos negócios humanos. Repetem sempre para nós a imortal advertência de Nietzsche: 'Todos os padres são mentirosos'" - Norman Mailer em "O Castelo na Floresta".

O Padre Ian acorda com o barulho constante de papel sendo rasgado. O Padre Ian está atordoado. Não faz a menor idéia de quanto tempo passou desacordado. Não faz a menor idéia do por quê ter dormido ao lado do púlpito. O barulho do papel sendo rasgado continua, ritmado. Sua cabeça lateja e alguns fios de cabelo se desprendem dolorosamente de uma pasta grudenta em sua nuca. Sangue. Com um esforço sobrenatural - dada a simplicidade dos movimentos e com as pontadas de dor pelo corpo todo a cada mínima solicitação muscular -, ele consegue virar e ficar com a barriga pra cima. A luzes dos vitrais penetram em seus olhos. Tudo, qualquer coisinha, parece ser um sacrilégio. O barulho do papel sendo rasgado ritmadamente dói em seus tímpanos. Começa a recobrar a memória aos poucos. Uma garotinha. Sim, uma garotinha veio procurá-lo com uma dúvida.

"Abri um livro do meu papai e lá dizia que Deus estava morto, Padre! É verdade?", dissera ela, menininha bonita de cabelos loiros e lisos na altura do pescoço, com uma franjinha reta caída na testa, sem dois dentes da arcada superior. Padre Ian lembrou-se de que ensaiou uma expressão grave ao ouvir as palavras da doce garotinha e, com essa expressão no rosto, convidou-a para acompanhá-lo até seu quarto nos fundos da Igreja para "revelar um segredo muito importante que nem o papai pode ficar sabendo".

Um vento frio e rasteiro arrepiou os pêlos do corpo já envelhecido do Padre Ian. Foi aí que se deu conta de que estava nu em pêlo. "Quem está aí?", murmurou em direção ao ruído constante de papel sendo rasgado. Ninguém respondeu. Padre Ian continuou tentando organizar os fatos; conseguiu lembrar que se encaminhou até seu quarto com a linda garotinha e, chegando lá, sentou em sua cama e colocou a pequena sentada em sua coxa direita. Pôs-se a alisar aquelas perninhas fininhas e lisas e a inalar o delicioso aroma de shampoo infantil que aqueles fios de ouro exalavam. Sentiu seu membro correspondendo a tais nuances com um leve intumescimento.

"Padre, qual é o segredo ultra-secreto que o senhor ia me contar?", perguntou a criança, sendo bolinada por dentro do shortinho rosa, parecendo achar a atitude do Padre uma parte do tal segredo ultra-secreto.

"O homem que escreveu aquilo, Verinha", começou o Padre Ian, com a voz tremendo de tanta excitação, "era um louco!".

E continuou: "Um bêbado, um homem mau, Verinha, capaz das maiores atrocidades com seus semelhantes", disse, revirando os olhos ao alisar uma pequena greta com a ponta do dedo médio.

"Este homem, Verinha, estava possuído por Satanás quando escreveu tamanha barbaridade!".

A menina olhava com atenção, com olhos arregalados, absorvendo tudo que o Padre proferia com toda aquela sabedoria.

O barulho do papel sendo rasgado de repente cessou. As memórias do Padre Ian foram somente até a menção da palavra "barbaridade" pois, depois disso, sentiu um solavanco na nuca e o mundo girou com luzes vermelhas, laranjas, azuis, e, sua visão ficou enuviada até que por fim mergulhou na escuridão total. E agora ali, ao lado do púlpito, mal conseguindo se mexer.

"Então Deus existe, hein, Padre Ian?", bradou uma voz de homem perto de onde o padre se encontrava.

"Deus está vendo tudo isso, meu filho", respondeu o padre.

O homem apareceu no campo de visão do padre. Era alto, estava sem camiseta e parecia ser feito de aço.

"Olha aqui o seu Deus, seu filho da puta", disse o homenzarrão, disparando um chute na costela do padre. Para o Padre Ian, Deus permitir aquele chute foi algo grave; um sinal de que Ele estava magoado por causa de suas atitudes com as crianças do bairro atrás da igreja, em seu quartinho minúsculo.

"Levanta o nosso representante de Deus aqui, Mané", disse o homem musculoso para um outro homem que surgiu segurando um castiçal e uma bíblia. Após deixar castiçal e bíblia com o musculoso, Mané agachou, posicionou o padre sentado, levantou e o puxou para cima. Depois, fez o padre sentar em um dos bancos em que os fiéis se amontoavam para ouvir a Palavra de Deus e buscar conforto.

Ébrio de dor, o Padre vislumbrou os dois homens arrancando as páginas de todas as bíblias que encontravam. Arrancavam as páginas do Apocalipse.

"Acho que acabamos com essa merda toda já, Rey", disse um Mané com a camiseta empapada de suor, apesar do frio que estava fazendo. O Padre Ian estremeceu ao ouvir o nome "Rey".

"Acho que já dá pra mostrar o verdadeiro Deus pro nosso querido padre aqui, Mané", disse um Rey com um tom de voz que fez com que o esfíncter do padre se contraísse.

Os dois homens passaram a juntar as folhas arrancadas do Apocalipse e enrolá-las, formando uma espécie de tubo, cilindro; conseguiram fazer quatro cilindros, no total. Depois, pegaram algumas velas dos castiçais e passaram a derretê-las por cima dos cilindros. Dado momento, com o rosto rubro, iluminado pela luz das velas, Rey ergueu um dos tubos já devidamente parafinado na altura da cabeça e direcionou um olhar perverso para o Padre e, em seguida, cuspiu na ponta arredondada do cilindro.

"Rey", ganiu o Padre, "Deus tem um lugar reservado para você e para sua família no Reino do Céu; basta você se arrepender, Rey".

"E o senhor, está arrependido de ter molestado a minha filha, Padre Ian?"

Padre Ian não respondeu; as lágrimas não deixaram.

"Mané, segura o velho de quatro aí".

Mané segurou o velho de quatro conforme Rey pediu.

Meia dúzia de curiosos que passavam diante da igreja no momento em que o padre era sodomizado adentraram o recinto, atraídos por gritos de dor e pedidos de clemência. Se depararam com Rey, o policial mais respeitado da cidade, enfiando tubos no traseiro do Padre Ian. Rey lançou-lhes um olhar que os fez girarem nos calcanhares e irem cuidar de suas próprias vidas.

"O que me diz do Supositório Divino, Padre Ian? Hein, padre pedófilo filho da puta?"

"Rey, por favor, eu te imploro, por favor, por favor...", clamou o padre.

"Mané, pode soltar esse merdinha", disse Rey, acompanhando com o olhar o padre se desmantelando no chão após a soltura do Mané. "Vira ele de frente, Mané", pediu Rey, sacando o berro da cintura e armando o cão.

Mané rolou o padre, que estava de bruços, para que este ficasse com a barriga pra cima.

"Algum último desejo antes de morrer, estimado Padre Ian?", disse Rey, fazendo mira na testa do padre.

"Que Deus me perdoe" foram as últimas palavras do Padre antes que seu rosto fosse perfurado por cinco vezes e seu sangue de Representante de Deus maculasse o linóleo sagrado da Igreja.

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Agradeço a Danna pela paciência e atenção.

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 06/03/2011
Reeditado em 06/03/2011
Código do texto: T2832617
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