TICÃO

T I C Ã O

Um dia apareceu em Mossoró, perambulando pelas ruas, um preto retinto, imenso – quase um metro e noventa – corpulento, esquisita carapinha branca, olhos avermelhados, de fala mansa e voz rouca, de andar lento e desengonçado, fungando como se farejasse alguma coisa. Devia estar na casa dos setenta anos. Trajava uma calça preta, velha, e uma blusa de mandapulão. Pés imensos, arrastando velhos chinelos de rabicho.

Só mais tarde se soube de sua procedência, que tivera família, porque e como chegara a Mossoró. Alguém, no mercado da cidade, perguntou-lhe o nome. Olhando de esguelha para o interlocutor, respondeu apenas:

- Ticão.

- Mas isso é nome, velho?

- É apelido, moço. O nome mesmo é Expedito. No começo era Tico, mas quando cresci muito desse jeito passou a ser Ticão.

- E de onde o senhor vem?

- Venho de longe, tangido pela seca. De tanto andar no chão quente, nesse sol de fogo, acho que vim do fim do mundo...

Surpreendeu ao curioso a fala mansa saindo de uma voz grave, um tanto arrevesada, mas num linguajar sem os vícios que era de se esperar do seu tipo. Notou apenas que tinha uma sonoridade de sofrimento.

O jovem, impressionado e curioso, insistiu com bons modos:

- Não quer falar sobre sua vida, seu Ticão?

- Ah, meu filho, não dá não. Seria uma história longa. Um dia, talvez, eu lhe conte... Se houver tempo...

Na verdade Ticão nascera no município de Iguatu, no Ceará, na fazenda do Cel. Messias. Seu pai trabalhara dezenas de anos para o coronel, para quem era pessoa de inteira confiança. Ticão fora criado pelo patrão, que lhe dera o estudo primário. Seu avô dissera-lhe que descendiam diretamente de escravo trazido da África. Quando o coronel vendeu a fazenda, fez as contas com Estevão e com o dinheiro recebido este comprou, em Russas, um naco de terra, umas trinta tarefas, terra da qual tirava o sustento para a mulher e dois filhos homens.

A filha, Lucinha saíra-lhe uma pretinha de corpo e de feições bonitas, nariz bem feito e lábios sensuais. Consciente dos seus dotes, já aos dezessete anos não perdia as festinhas nas roças vizinhas até que um soldado de polícia se embeiçou por ela e a levou. Foi uma grande dor para Ticão, que lhe queria muito bem. Pensou em ir à sua procura, mas, pensando bem, desistiu.

No inverno, plantava milho e feijão. Criava algumas dezenas de cabras e um bocado de galinhas, cujos ovos vendia na cidade, deixando alguns para consumo e para novas ninhadas. À noite, a rede no alpendre, ficava em prosa com roceiros vizinhos. Sentia-se feliz.

Mas, na década de 40, após um ano ruim de chuva, sobreveio uma grande seca. Nem milho, nem feijão. Nada tinha nos depósitos. Foi vendendo as criações para comprar mantimentos. As galinhas, as que não comeram, também foram sumindo, de fome e de doença. Ainda por cima, sinhá Zefinha, sua mulher, amoitou, apareceu uma febre alta e muita tosse. Sem vintém, sem ter para quem apelar naquele socavão, chamou a rezadeira do lugar, dona Mundinha. Mas, nenhuma das rezas mais fortes de sua sabença, nem os chás que aplicava, melhoraram a saúde de Zefinha. Dona Mundinha se rendeu.

- É, compadre, aqui agora só um milagre.

- E Ticão viu, com grande tristeza, a companheira de tantos anos desfalecer. Enterrou-a lá mesmo, no final do cercado, fincando sobre o montículo de terra uma tosca cruz de madeira. Não chorou. Rezou, de pé mesmo, o Pai Nosso, que aprendera na casa dos antigos patrões, quando jovem.

- E agora, Zefinha, quem vai fazer o meu guisado de bode? Quem vai me dar cafuné?

Vendo que os filhos, já rapazes, emagreciam; mandou que fossem para a cidade tentar sobreviver. Ficariam sós, ele e o cachorro Melado, um vira-latas branco com algumas manchas cor de barro.

Bandos de retirantes passavam em frente ao seu rancho: homens, mulheres, crianças, alguns montados em animais esquálidos, sempre um cão sardento a acompanhá-los. Uma amargura para o seu coração.

Vivendo ali, naquela solidão, a saudade e a tristeza tomavam conta de sua alma. Nem lágrimas tinha para chorar, para aliviar a dor no peito. O jeito foi sair também, abandonar tudo, tentar sobreviver.

Enfim, juntou-se a um grupo que pretendia ir para Aracati. Voltou um último olhar para aquele casebre onde vivera tantos anos com Zefinha, que fora pretinha bonita e prendada, agora ali numa cova (adeus minha velha, não sei se volto...); lembrou-se de Lucinha que não regressara; dos filhos de quem não tivera mais notícias; dos seus cabritinhos, de suas galinhas, a cacarejar no quintal; dos galos saudando a aurora e anunciando o pôr do sol, e da sombra do juazeiro em frente da casa.

A fome, a sede e o calor sugavam-lhe toda a energia. De raro em raro, um caminhão velho com uma pipa d’água, mandado pelo Governo, suavizava a sede dos retirantes. Os preás, rápidos, cortavam o caminho. Era difícil pegá-los.

Em Aracati os recursos eram parcos. Alguns ficaram abrigados por lá, mas ele resolveu prosseguir, agora só, sem mais o cachorro, que não resistira. Enquanto andava, ruminava o passado. Seus pais, na fazenda do Cel. Messias, homem rico e de fartura, político de prestígio, mas simples e justo. Pagara-lhe o ensino primário. Anos mais tarde o Dr. Afonso resolvera vender a fazenda, mas fez boas contas com seu pai. Lembrava-se ainda do avô, vivendo por lá quase de favor, contando histórias do passado. Sua casinha, seu roçado, ficaram abandonados. Será que ainda voltaria? Onde andariam seus filhos? E assim, ruminando pensamentos, prosseguia a caminhada quase arrastando os pés cansados, o sol refletindo-se no chão que reverberava sob o calor escaldante; de um lado e do outro do caminho a rala vegetação, o juremal, estava ressequida, parecendo morta, estendendo ao céu os galhos secos como numa súplica. Só aqui e ali, um juazeiro triste resistia ao prolongado estio oferecendo ao viandante um pouco de sombra.

Ouvira falar que Mossoró era uma cidade grande. Iria ver. Juntou-se a dois companheiros, que, entretanto, no meio do caminho decidiram desviar-se em busca do litoral.

Chegou ao anoitecer. Foi entrando devagarinho. Viu, aqui e ali, as luzes de alguns postes acesas. A certa altura encontrou a latada de um barraco que parecia abandonado, pois não notara sinal de vida. Acomodou-se ali até o dia amanhecer. Logo cedo acordou com fome e muita sede. Levantou-se e foi até uma casa a uns cinquenta metros. Bateu na porta e uma mulher apareceu, assustada. Teve medo, mas não fechou a porta. Veio o marido.

- Patrão, sou um retirante. Venho de longe. Estou morrendo de sede. Me dê um pouco d’água.

O homem foi lá dentro e veio com uma caneca d’água e um pão seco. Ticão não resistiu a tamanha caridade. Os olhos desta vez marejaram, o que a mulher, que acompanhara o marido, notou e teve pena. Mas não lhe perguntou nada.

Daí saiu perambulando pelas ruas até dar no mercado. Foi quando notou que a cidade estava cheia de flagelados, centenas deles, vindos principalmente dos municípios do Oeste. Muitos se concentravam em frente à Prefeitura, que conseguira junto ao Governo do Estado e o comércio local um sortimento de farinha, feijão, rapaduras e outros gêneros, que as comissões de ajuda distribuíam. Mulheres, acompanhadas dos filhos, saiam pelas ruas, de casa em casa, pedindo comida. Mas a presença de Ticão, um tipo singular, se destacava dos demais. Disse que era também um retirante, vindo do Ceará; seus companheiros tinham ficado pela estrada.

Ignorava-se onde dormia, mas logo cedo, o dia mal amanhecendo, estava de volta ao mercado. Rondava os tabuleiros da calçada sem pedir nada, mas recebia o que lhe dessem para matar a fome.

Não se juntara aos demais retirantes. Às vezes era visto caminhando a esmo pelas ruas. Encontrou o cemitério e entrou, admirando as catacumbas e tantos mausoléus. Na catedral, persignava-se à porta e entrava, sentando-se no último banco, demorando-se bastante, não se sabia se só para descansar à sua sombra, ou para orar.

Ninguém tinha notícia de que houvesse feito qualquer mal, porém as crianças e algumas mulheres fugiam à aproximação do homem grande e esquisito. Ao vê-lo, alguns meninos sonhavam à noite com lobisomem.

Com o passar dos dias, o povo foi se acostumando com aquela presença insólita, aquele grande vulto negro, de pés imensos, carapinha branca e olhos vermelhos, queimados pela luz ardente do sol.

Mas, uma noite, na Baixinha, desapareceu um menino. Logo os maldosos atribuíram o fato a Ticão. Era ele, o lobisomem. A acusação chegou a seus ouvidos. O delegado mandou dois soldados intimá-lo a comparecer à Delegacia. Ticão enfrentou-os dizendo que não iria. Os policiais o temeram e retornaram à presença do chefe.

Então o delegado foi pessoalmente, com mais três guardas, para prendê-lo.

- Seu Ticão, o senhor está preso como suspeito do desaparecimento de um menino e por desacato à autoridade.

O homem olhou-o bem nos olhos e disse:

- Seu delegado, não sei de perdição de menino, não sei o que o senhor tá dizendo. Sou um negro pacato e respeitador. Tenho terra no Ceará. Estou aqui nesta situação por causa desta seca medonha. Perdi tudo e sai pelo mundo morrendo de fome.

- Mas o senhor tem que ir comigo à Delegacia. Está aqui na cidade e ninguém sabe quem é, nem de onde veio.

- Se o senhor quer me interrogar, está bem. Mas Deus sabe que sou inocente.

Houve o interrogatório. Ticão contou sua história, que até comoveu o delegado. Não tendo encontrado nada, nem contradição em suas declarações, e não havendo testemunhas, Ticão foi solto e voltou às ruas da cidade. Algumas pessoas caridosas lhe deram algumas roupas limpas e até uns chinelos.

Pouco mais de um mês depois some outro menino. Intrigados com o fato, já que tais desaparecimentos nunca tinham acontecido, os moradores do bairro voltaram-se novamente contra Ticão, uns dizendo que o tinham visto passando no escuro da noite. Nenhuma evidência.

Ouvido o Juiz, o delegado resolveu guardá-lo da cadeia por algum tempo, mesmo sob seus protestos. O pobre Ticão, que sempre fora um homem de bem e agora estava longe de casa e dos seus, além de sofrer as agruras da seca, que o obrigara a sair pelo mundo em busca da sobrevivência, não se conformava em estar preso em meio a um bando de assassinos; tal situação confrangia-lhe o coração já doente.

Deitado no chão do xadrez, não conseguia dormir pensando no seu destino. Sempre fora obediente, trabalhador e temente a Deus. Pensou no velho pai, lembrou-se de Zefinha recém-casados, nos três filhos que não sabia onde andavam. Depois de tantos anos, a seca acabara, mas não os seus sonhos, que nunca os tivera, mas com tudo que tinha feito em toda sua vida. Estava agora ali, preso como assassino de crianças, sem ter para quem apelar, senão para Deus. Pedia-Lhe que o ajudasse a livrar-se dessa triste situação.

Ticão permanecia trancafiado, até que uma noite ouviu-se um grito em Bom Jardim. Alguém viu um vulto esgueirar-se na sombra, arrastando um menino. De repente, todos correram munidos de paus, facões e até revólveres. O tipo, na fuga, deixara o menino no caminho, desfalecido com uma pancada na cabeça, e corria pelo mato. Mas não foi longe; alcançaram-no. Era Severino Cancão, solteirão, larápio, que morava sozinho num casebre isolado. Seqüestrava os meninos, estuprava-os, matava e os enterrava.

Pego, quis resistir, mas levou uma boa sova, muitas pancadas, que o deixaram desmaiado, assim mesmo levado, na mesma noite, à Delegacia – preso em flagrante.

Esclarecidos os casos, Ticão foi solto.

Já começava o novo ano. Logo em janeiro, as primeiras chuvas prenunciaram um bom inverno. Assim que viu as nuvens promissoras e teve noticias de chuva no Ceará, conseguiu um pequeno suprimento de farinha, jabá, bolacha e rapadura, despediu-se de alguns amigos que já fizera, de algumas famílias caridosas que o ajudaram, e pôs os pés na estrada. No meio do caminho que - ao contrário de quando vinha em retirada, a mata já reverdecera num milagre da natureza - pegou uma carona e com quatro dias chegou à morada que há dois anos abandonara.

Qual não foi sua surpresa ao encontrar lá seus dois rapazes, um deles casado e com um rebento, a choupana refeita e acrescida de mais um quarto. Os filhos se haviam dado bem. Tinham conseguido serviço na construção de um açude. Depois, o empreiteiro arranjara-lhes trabalho na estrada, e, assim, sobreviveram à seca e ainda trouxeram um pouquinho de dinheiro para começar tudo de novo.

A chuva copiosa nivelara com o chão o montículo onde fora sepultada Zefinha; a pequena cruz o vento arrancara. Ticão depositou no local algumas flores do campo, que já brotavam do chão molhado.

Passados três anos, a filha Lucinha, que fugira com o soldado, chegou para uma visita, já casada e com dois filhos. Foi uma grande alegria para o velho Ticão.

Sempre ia ajudar os filhos na limpa do roçado, o milharal já crescido, o feijão começando a florar. Os pássaros sobrevoavam a terra, bem-te-vís e galos de campina cantavam na copa do oitizeiro no cercado do vizinho. Uma tarde, Ticão estava na faina quando sentiu uma dor no peito. Parou o trabalho, encostou a enxada e sentou-se no chão molhado; seria cansaço, já estava velho. Mas a dor foi aumentando. O que seria aquilo? Pôs a mão sobre o coração. Quis chamar alguém, mas faltaram-lhe forças e arriou o corpo. A vista escurecia. Pensou em Zefinha. Pensou nos filhos. Sentiu evolar-se no espaço, numa sensação estranha de paz.

Ao anoitecer, vendo que o pai estava demorando, foram procurá-lo, encontrando-o já morto. Vestiram-no e velaram seu corpo por toda a noite.

Chovia forte. Na manhã do dia seguinte, envolveram-no em sua velha rede e o enterraram em cova junto à de Zefinha.

Do céu desciam gotas de orvalho, restos da chuva que caíra à noite.

Obery Rodrigues
Enviado por Obery Rodrigues em 05/03/2011
Código do texto: T2829912