A TELA OU A MENINA NA GRADE DE FERRO

A rua estava meio silenciosa. Rua do Progresso. O silêncio pesava abafado. Tempo morno. Meus passos, ao contrário do tempo, estavam leves, tranquilos; como se estivessem fazendo um passeio bucólico em uma viagem de reconhecimento poético da cidade. Recife tem um tom poético, é certo, mas não é uma cidade bucólica ou melancólica: seu povo saltita, como passistas de frevo. A cultura pulsa no sangue do povo.

Lentamente eu seguia naquela tarde de sol morno e de pouco movimento. Era sábado? A leveza de meus passos talvez se devesse à falta de pensamentos; os pensamentos pesam. Essa falta de pensamentos limpara da memória o que eu tinha a fazer: para onde ia àquela hora, naquela rua? A leveza apagou a memória, o silêncio da memória tornou meus passos leves. Sem o peso dos pensamentos eu parecia flutuar.

Os olhos viajavam, também mansamente. Creio mesmo que estava a cantarolar. Não tenho lembrança da canção, era um murmúrio sem peso. Tudo era leve. Isso se chama felicidade? Felicidade é o esquecimento da realidade?

Lembro-me que tivera vontade de morrer naquela manhã, lembro disso agora, como fora do corpo que anda pela Rua do Progresso, mente paralela, delírio de uma mente sem foco. Delírio.

Os passos leves, agora sei que eram fruto do delírio; a dor povoava meu coração como uma paixão avassaladora, coisa que nunca senti, nem por uma professora do primário. A mente a cantarolar e o choque: realidade e ilusão no mesmo corpo. Fim do esquecimento, na leveza?

Nova história.

Dentro de uma daquelas casas antigas, mal cuidadas, em deterioração, uma criança. Uma menina de cor branca, não sei por que a cor precisou ser detalhada; pele branca, nua da cintura para cima, só de calcinha, uma calcinha rosa, desbotada, um pouco enrolada na cintura, cabelos desgrenhados, totalmente em desalinho. Suas mãos estavam agarradas a uma grade, portão de ferro, que estava com cadeado. Fera enjaulada.

As lágrimas corriam em seu rosto, mas o choro não tinha som. Ela também não tinha direcionamento no olhar, absolutamente vago, distante, inexistente.

Parecia uma tela. Seria uma tela? De que pintor?

Meus pés pesaram imediatamente ao encontro da imagem. Lembrei-me que queria morrer. Faltei ao trabalho naquele dia como se quisesse ser expulso do mundo, da mediocridade, da minha pesada inexistência: do peso do nada em meu pseudoviver. Só não havia cometido o suicídio naquela manhã por que isso iria me expor. E eu não queria ser notado.

As mãos grudadas à grade. Não havia intenção de reclamar pela prisão: ela estava presa à prisão, era estado de alma.

As lágrimas banhavam seu rosto, que estava sujo; tela manchada, o pintor ainda não havia feito a limpeza. Era o fim da esperança.

Minha mente pesou. Pesaram meus pés. O tempo estava pesado já, morno, estranho. O sol não estava manso, estava enjaulado, preso ás grades das densas nuvens. Mas não havia nuvens no céu. Não havia nada.

Era o peso da inexistência que fluía melancolicamente. Melancolicamente? Parecia uma situação bucólica.

A tela estava viva; fora um grande mestre a pintar. A menina chora. Não havia som, mas parecia gritar. Seu choro não tinha som, mas meus ouvidos doíam com seus gritos. Suas lágrimas furavam meu coração, como cachoeira. Aquela tela tinha um silêncio ensurdecedor; e uma dor seu nome, sem identidade.

Sua boca estava aberta, descia uma baba, talvez fossem as lágrimas; eram lágrimas. Abundantemente.

Estranhamente não se ouvia o som do seu choro, de sua lamentação – ela era uma lamentação, uma reclamação, um grito. Dor profunda em silêncio.

Recostei-me a uma árvore e fiquei a observar seu estado, o desfecho do caso, o que estava acontecendo. Aguardando. Esse era meu pecado. Fico aguardando. O tempo pesado, a imagem ainda mais pesada fazia doer meu coração, por sua realidade. Quem seria o mestre de tal pintura? Qual seria o desfecho ideal? Seria aquilo uma cena novelesca, uma representação?

Suas mãos cada vez seguravam com mais firmeza as grades do portão de ferro, parecia que sangravam. Nada daquilo passava como se verdade fosse. Recostado à árvore, parecia que a leveza havia voltado. Tudo estava igual, mas eu estava mais leve. Novamente me veio a ideia entre o real e o ilusório: e pensei delirar. De tão leve que voltara a me sentir, pensei estar subindo na árvore.

A tela estava viva. Do alto da árvore pude perceber que havia alguém em casa, a casa estava viva, tinha gente além da tela, talvez o mestre daquela obra; eu queria muito conhecer quem fez tal produção. Respirei profundamente. Senti a dor de volta. Não estava no alto da árvore, apensas sobre seu tronco, o que me fazia ficar um pouco mais alto e enxergar o que se passava dentro daquela casa. Havia vida sim, eu podia ver. Mas não podia olhar muito para dentro, não poderia ser notado. Era um risco. A realidade amedronta, preferia viver a leveza que o delírio me causa, a ilusão de ser feliz por quase não existir, é a melhor definição de felicidade que já vi, como se eu tivesse comprado um capote novo, estava frio, muito frio, muito frio mesmo, pensei ter sido pelo frio que eu não estava a sentir dor e me sentia tão leve.

Estava sobre o tronco da árvore. Que árvore era aquela? Meus olhos se encontraram com os olhos da menina. Choque. Qual seria a sua idade? Seis, sete, oito anos... a pele não era branca, estava apagada. As mãos sangravam com a força com que ela segurava aquelas barras de ferro do portão. Era como se uma força invisível estivesse tentando puxá-la de lá e ela estava a resistir, com toda sua pequena força.

O sangue descia pelas grades do portão, do outro lado da rua, recostado à árvore, eu podia ver um líquido descer, e não podia ser lágrima, estava muito longe dos olhos. Que, aliás, já estavam secos, não tinha mais lágrimas. Seu rosto estava totalmente banhado. Não seria aquilo suor? Não. Era mais encorpado e estava vivo. O suor não tem vida: as lágrimas têm.

Seus olhos se encontraram com os meus. O choque. A tela estava ainda mais viva. A dor estava estampada com tanta firmeza que a minha dor voltou. Por minha inércia, meu constante esperar, tive vontade de morrer naquele momento, “por que não me matara hoje pela manhã? Teria amenizado meu sofrimento. Melhor teria sido morrer a ver essa cena, essa imagem, essa tela se movimentando”, meus pensamentos pesavam. Escorreguei do tronco da árvore, quase caí, mas meus olhos não desgrudaram dos daquela menina. Olhos de seda, cor de mel, deviam ter sido quando tinham vida. O mestre representara muito bem o olhar naquela tela.

Apesar de sem vida, eles sugavam os meus. Agora meus olhos choravam, silenciosamente, uma dor que não tem nome, sem identidade. Uma dor que não se pode sentir sem ter vontade de morrer. A dor da desesperança, do vazio, do nada. A dor da inutilidade. Aguardar.

Seus olhos jogaram as lágrimas nos meus. Eu chorava desconsoladamente, mas não podia ter som. A inutilidade é silenciosa, só grita à mente. As lágrimas molhavam meu rosto, pesado de vez. O tempo fechou, Recife escurecendo com pesadas nuvens, “agora há”, começou a ventar um vento bravio, indomável. Nossos olhos se agarraram como se não houvesse outra saída para eles. Os pingos foram caindo, agora grossos, mais grossos, como se facas a perfurar meus olhos, a formar um muro entre nossos olhos. Era uma parede densa de nada. Não. De água, de vento, de coisas sem forma; não era cimento, concreto, pedra, barro. Era o vento que formava uma parede densa, intransponível. Mas agora eu podia ver com clareza, a densidade não pode atrapalhar o olhar que vem de dentro, olhar que não é dos olhos, aquilo que escorria pelas grades do portão de ferro, era sangue sim, que agora ia ficando mais claro, mais fraco; estava misturado às águas, que também lavavam seus olhos, seu rosto, nossos olhos.

As águas estavam entrando em sua casa, chuva de vento, mas ela estava resistindo com força, a mesma força. Acho que estava procurando meus olhos, meus olhos procurando os dela: ambos buscavam a salvação, a libertação, o esquecimento talvez? Ou já estávamos esquecidos, por isso tal resistência? De repente se fez silêncio. Era notório que os ventos tinham cessado, a chuva passara. Olhei ao redor, não havia destruição. Por um momento pensei que a árvore ia cair, me agarrei com tanta força. Ela estava lá, eu também, meus olhos cheios de lágrimas, minhas mãos sujas de sangue, meus pés descalços sangravam com cortes causados pelas cascas do tronco da árvore. Olhei para mim, lá estava eu, ela, eu. Tudo continuava, menos ela. No portão não havia mais ninguém. A porta continuava aberta, o portão fechado de cadeado, mas não havia ninguém. Só lembranças e silêncio. O mesmo silêncio que fere minha alma como faca.

Atravessei a rua, as águas corriam como riachos, com força; só eu estava fraco. O sangue ainda era visível, voltara depois da chuva, a menina estava invisível, a tela era viva, tenho certeza, não era delírio, não foi delírio. Delírio.

Olhei bem para dentro da casa, não ouvi vozes. A sala estava toda molhada, água por todo lado. Sobre o sofá uma boneca sem cabeça, sem braços, estava abandonada. Um gato se espreguiçava no canto do sofá. Vida. O gato existia, sem lembranças, sem memória, sem história.

A chuva voltou ainda mais forte. Corri descalço pelo meio da rua, chutando as águas, feito criança viva.

Cheguei à Avenida Conde da Boa Vista, não lembro de ter passado em frente ao Consulado Americano, estava todo molhado. Corri desesperadamente com medo daqueles olhos que me perseguiam, olhos de águia a me perseguir, olhos, muitos olhos. Parei sem fôlego. Não saberia dizer onde havia parado; sei que havia umas grades de ferro. Estava cansado, muito cansado.

A tela era viva, não sei quem era o mestre que a tinha construído, mas era uma tela viva, de um grande mestre. As lágrimas lavavam seu rosto, profusamente, e havia sangue em suas mãos; por segurar com tanta força as grades de ferro do portão. Ela chorava sem som; só um grande mestre pode fazer isso.

Delírio.

Estava leve, um sol brando, meio silencioso saia das nuvens. Rua do Progresso. Manhã de uma terça-feira. Terça-feira? Uma criança, menina de seus seis, sete, oito anos, estava agarrada a uma grade de ferro e chorava querendo sair, querendo ir brincar na rua, “não pode ir pra rua, não vês que tem carros passando?”, ouvi uma voz gritar com ela. Seu choro doía em meus ouvidos. Passei por lá fingindo não ver a cena. Silêncio total.

Não voltei mais por lá.

Comprei meu pão e fui para casa por outro caminho.

INALDO TENÓRIO DE MOURA CAVALCANTI
Enviado por INALDO TENÓRIO DE MOURA CAVALCANTI em 04/03/2011
Reeditado em 04/03/2011
Código do texto: T2829137