Vale do Rio Anhangabaú

No centro de São Paulo há um rio imaginário. Ali nadam peixes antigos, que vivem o mesmo tempo que as tartarugas. As pedras são fofas como espumas; nele bebe um menino sem família, quase nu, brotado da calçada e levemente entorpecido; ali ele pesca seus peixes e – dizem – pode escutar às margens deste rio choronas que soam como móbiles de cristal, tão delicadas. O moleque, depois de saciar a fome e aplacar a sede, se deita à sombra de um grande ipê amarelo que está florido por acaso, fora da estação. Nesta árvore que neste segundo tem mais de três mil anos, as flores nascem e caem com desenvoltura de bailarinas sobre a relva suave que oscila junto ao curso d’água. Elas são um verdadeiro Bolshoi! Se lançam em piruetas sem gravidade, delicadas, brilhantes e opacas como se fossem mais espessas do que pétalas meras.

A brisa suave excita os móbiles e os cristais, que entusiasmados vibram incessantemente, a harmonia é potente e colorida, a melodia é caótica. Ainda assim, vale perder alguns minutos, sob a agradável guarida desta copa para tentar descobrir se alguém compôs essa música e quem seria capaz de dispor de modo tão singular esses móbiles de cristal? E o que é esse som de mar e de nuvem trazido pela correnteza? Como pode uma nuvem soar tão belamente?...

E enxerga o céu, pela primeira vez de fato o vê e escuta.

- Como meu peito está cheio. Acho que é catarro.

Após escarrar levemente, arruma o braço esquerdo de modo a proteger sua cabeça, encostando-se ao tronco, bambo de satisfação e suavemente narcotizado. Bate a mão no pequeno bolso da bermuda, única peça de roupa que porta e retira dali um maço de cigarros já amassado. Há um ótimo cigarro dentro. E mais uma vez o isqueiro soa terrível, cortando a perfeição bucólica da cena imaginária.

- Só mais um cigarro, por favor, me perdoe, natureza. É impossível gozar completamente sem um pouco de fogo e de refletir...

Escuta mais uma vez o ranger das nuvens no firmamento, derrapando ferozes nas curvas do espaço. Que delícia é o tabaco coçando-lhe a garganta com sua dentadura maravilhosamente fervente. Contemplar diferentes coisas sob o efeito das brasas, por diversos ângulos, tentar diferentes raciocínio e, com efeito, chegar a conclusões perfeitamente contraditórias, opostas sobre o mesmo assunto. Onde mais ser e rasgar-se, refletir e emendar-se estariam tão próximos, senão em meio a um vale imaginário de um riacho inexistente, no centro moribundo de uma cidade desmatada? Sorriu e viu o cogumelo crescer em meio ao lixo, viu o verde se renovar. Renovar-se e permanecer constantemente podre.

- Toda vez que alço meus braços, já estou tocando o éter! Lambo o ar, cheiro todo o éter, cheiro os ventos, cheiro o pó e a poeira, o perfume e o que lança os perfumes, o rio que corre à minha frente. Ainda tenho o peito carregado.

Após escarrar embevecido, observa uma pedra no chão e vê como treme, como vibra o cascalho, como trazido por uma correnteza poderosa e, encontrando obstáculo, incapaz de continuar seu caminho. Vai se movendo, como se houvesse vida, como se comunicasse com os colegas mortos do entorno. Vai lá e retira a pequena rocha com as duas mãos e – por baixo – descobre um rio que se alarga. Toma o cuidado então de fazer a barra das calças para entrar em águas fluviais e retirar todas as pedras que escondem o leito secreto. Move montanhas, em suma! E o que surge é nada menos do que um porto fluvial! O fundo é visível, até que vem a chuva e turva tudo. Mas é grande e envolve tantas léguas quanto a vista dá a encontrar. Para trás já se está percebendo como invade as avenidas; para frente vai derretendo os prédios que passavam sorrateiramente sobre o caminho. Agora é o ruído da chuva, inverso dos cristais que se impõe e os anula: harmonicamente caótico, melodicamente constante.

- Quer dizer que as águas estavam morrendo asfixiadas sob as calçadas e pedregulhos! Ora, quem diria?

Ele pensa consigo, sentindo a lancinante abstinência de aventura, o barato fissurante que é o marulho d’água. Ah... a abstinência esfaimante. Forceja por roer o minério que acaba de mover. Porém, aí está o elemento sublime das pedras, que se não se lhes possa comer, nem humanamente beber, pode-se sempre defumá-las...

- Uma pedrinha no meu cachimbo e serei feliz para sempre.

Danilo da Costa Leite
Enviado por Danilo da Costa Leite em 04/03/2011
Código do texto: T2829007
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