Após um clarão
Um menino, que nem completara mísera década de vida, observa confuso o cômodo em que se encontra, há um vácuo em sua memória. Tenta situar-se, forçar as lembranças de volta ao seu cérebro, algumas retornam, lembra-se do cheiro de borracha queimada, do som de uma pancada, a dor no crânio que colidiu contra não se sabe o que. Fora isto, a cor de sangue, e o choro do irmão. Descobre onde está, num hospital.
Mas as paredes não são brancas, pacíficas, são de um azul baço, a iluminação transforma a escuridão em penumbra. Escuta sons metálicos, uma respiração pesada e ritmada, outra leve, quase inaudível, passos, despreocupados, desprovidos de pressa, e um gemido constante, doloroso, que é acompanhado pelo roçar de tecido contra algo viscoso. Não tem certeza se a penumbra é culpa da luz ineficiente, ou dele, que não quer enxergar. O infante ensaia passos incertos, os olhos correm tudo, ainda tenta compreender como chegou há tão inusitado lugar.
Lembra-se de estar amarrado, incapaz de movimentar nada mais que os dedos, e de ver as lâmpadas, incandescentes círculos atados ao teto, passarem por ele em velocidade vertiginosa. Fazia curvas, as luzes continuavam a cruzar seu campo de visão em intervalos breves e regulares, tenta virar o rosto para o lado, qualquer direção em que possa não ver o teto, as luzes o tonteiam. Não pode, o pescoço também está preso. Escuta vozes que parecem se embrulhar, que hora vem do outro lado do mundo, hora de milímetros de seus ouvidos.
As lembranças gentilmente cedem o lugar para o turvo presente, o pequeno garoto nota algo estirado no chão, muito próximo dele, coberto por um lençol, que inala e exala lentamente o ar, e a cada tentativa de se mover, emite aquele gemido suplicante; ouve um arrastar debaixo do alvo tecido. Tenta ignorar aquilo que espreita embaixo do tecido, e continua a batalha contra o que quer que tenha devorado o preciso pedaço de memória que lhe falta.
Tudo lhe parece mais claro, lembra que era numa maca em que estava imobilizado, e vozes impacientes o mandam fechar os olhos e não mover um único músculo. Ele obedece, as pálpebras cerradas trazem consigo a indesejada escuridão, e com ela, o medo. Ele não vê, de olhos fechados não pode, mas sabe que os curtos pêlos do braço e nuca se arrepiaram, sabe que o peito sobe e desce, rapidamente, do máximo ao mínimo que os pulmões e o tórax ainda por se desenvolverem permitem. Mesmo de olhos fechados, sente um clarão que torna o escuro alaranjado, e escuta uma voz distante e imperativa:
- Larga ele lá, junto com o irmão.
O irmão! Com espanto e repreensão evidentes na pequena face, com cabelos castanho-claros levemente compridos, a criança retorna do devaneio e passa a examinar o cômodo com olhos desesperados.
Agora que ele nota, vários homens forram a sala, alguns sentados, outros largados em macas, alguns tossem, outros massageiam as têmporas com dedicação incomparável e suspiram de dor. O garotinho se sente oprimido, assustado, e olha em volta, encarando a todos em busca de conforto, mas nos rostos ao seu redor não encontra nada fora indiferença ou desdém. Na verdade, um ou outro demonstra ausência na face, como se estivessem desligados da realidade. Seus olhos, desobedientes, entregam-se a irresistível atração que aquilo, coberto por alvo tecido, cria, tenta lutar contra seu rosto que se vira, sofre a cada instante, mas não consegue desviar o olhar. A coisa que se esconde no lençol, geme, e algo se move, uma mão rasteja, fugindo do tecido que lhe cobre. Ela é vermelha, vermelho sangue, o que não é carne viva, é chaga. Os dedos se contorcem, o conjunto, a mão inchada e vermelha, os delgados dedos que arranham o chão sujo, lembra uma enorme aranha rubra que agoniza em seus espamos de morte. "Mais não, mais não, não deixa sair mais nada dali", suplica, não sabe ao certo para quem, o menininho. Ele fita a mão que buscava liberdade, não respira há bilhões de batidas de coração, não consegue desviar o olhar e rezar para que aquilo pare. Súbito, o irmão volta-lhe a mente, arrancando-o do torpor, e perdido num misto de alívio e terror ele o encontra.
Numa maca, alguns passos de distância, um bracinho, claro como uma nuvem no céu, pende sem vida, largado como um pedaço de carne preso a algo que não o deixa cair por completo. A criança, sufocada pela irrealidade daquilo - há pouco dava socos naquele braço que jaz estendido - se aproxima, receoso, da maca. O olhar fixo na mãozinha alva, ele se sente a beira das lágrimas, respira fundo, uma, duas, na terceira tentativa, toca a mão flutuante. Ainda está quente. Vai seguindo com olhos que brilham inundados de lágrimas contidas, toda a extensão do braço, engole a saliva que mais parece uma rocha atravessada em sua garganta, e eventualmente, fita o rosto do irmão mais novo. Corre com a palma da mão a testa rosada, os dedos passam pelos cabelos louros, sente a maciez deles. Sussurra o nome do irmão, não há resposta, novamente, um pouco mais alto. “Por favor, acorda, por favor", ele cola o ouvido nos lábios do irmão, o ar entra e sai num respirar suave, tranqüilo. Com um aperto no peito, ele pronuncia o nome em alto e bom som, chacoalhando levemente pelos ombros a criança que jaz inconsciente, desta vez há resposta. Alguém o manda se calar.
Ele cai de joelhos, encosta a testa nas costas da mão do irmãozinho, começa a soluçar, consegue fazer com que os soluços não passem de soluços. Escuta uma voz jocosa:
- E aí, quem cuida do queimadinho hoje?
Risos.
O garoto, que não vira dez verões, vira-se e vê um homem de jaleco branco, rindo, e apontando para a criatura em sua alcova de tecido branco. Como se para responder, ela redobra seus esforços em escapar, solta um ruído gutural e se remexe. Um braço começa a seguir a mão que se libertara, parte do lençol que cobria a cabeça do "queimadinho" escorre lentamente. Ele vislumbra o crânio calcinado, um olho sem pálpebra o encara, percebe manchas de sangue seco e escuro em meio à brancura do lençol. Seu controle se esvai, volta a repousar a testa na mão do irmão, que repousa no infinito. "Acorda, acorda, acorda, por favor". Os soluços lhe escapam do controle, as lágrimas pelos olhos. Chora como criança.
Em meio àquela opressão, tristeza e desespero, em meio aquelas pessoas que enfurnadas em seus próprios problemas ignoram suas súplicas, escuta uma voz doce, preocupada, um bálsamo para a alma em agonia, a lhe chamar do outro lado, em uma outra sala, atravessando o corredor:
- Ô pequeninho, chora não, vem cá.
As lágrimas embaçam sua vista, mas ele percebe uma mulher meio velha, negra e obesa, que lhe convida de braços abertos. Ele se levanta e começa a ir em direção a ela; antes de atravessas o corredor, que parece tão longe quanto a outra margem de um oceano, volta, coloca o braço do irmão em cima da maca em que ele repousa, ao lado do seu corpo desacordado. Agora vai até a senhora cor de ébano, que o recolhe em seu vasto busto e lhe faz chamegos e cafunés enquanto canta baixinho. Ele chora copiosamente aninhado nos seios da mulher, a abraça, e pergunta, com voz fina, entrecortada por soluços:
- Por que ele? Por que ele tinha que se machucar?
Ela nada responde, sábia, amorosa e boa mulher, só o abraça e afaga. Ele fica lá, mantêm-se em pranto até que se seque a fonte. Passado um tempo sem medida, ouve algo que parece ser apenas uma resposta aos seus pedidos, parece distante, distorcida, irreal, ouve a voz da mãe, carregada de raiva e preocupação. Tudo mais se apaga, a penumbra, os restos humanos sob o lençol, as carrancas que o ignoram, o riso de escárnio dos homens de jaleco, a negra que o consolava. Larga dela e corre em direção à mãe, as lágrimas deixaram rastros na face suja da criança, se agarra em suas pernas, e enquanto ela o suspende até seu colo, e ele repousa o rostinho exausto sobre o ombro materno, diz tudo que tinha para dizer, sem formar mísera palavra. É conduzido, ainda a soluçar, seguro nas mãos da mãe, até outro lugar em que mais dos seus o aguardam, olha para trás, e vê algo de dissolvendo numa névoa, uma imagem que jamais conseguiu recriar em sua mente, até que um dia, anos e anos depois, ele se lembrou de algo.
Jamais chegou a agradecer a boa senhora.