GAROTO CEROTO

Não fosse tão frágil, entraria atirando na sala de aula. Mas era frágil e estava de férias. Antes ocioso demais, muito tempo para planejar contra o mundo, via a inevitável volta às aulas e as gozações das quais era alvo.

Era alvo de gozações.

Muito ocioso, procurou na Internet o nome para as gozações, um modo de revidar; o lugar certo para comprar uma arma, disponibilizar um vídeo explicando suas razões de querer acabar com tudo.

Explicaria que seu ódio se devia ao apelido. O fato de não se solidarizarem com sua renite, sinusite, suas gripes, o chamarem de Garoto Ceroto, justificava seus planos. Por isso precisava de uma arma, precisava deixar de ser tão frágil, raquítico.

Seu pai lhe explicava que era assim mesmo, que as crianças são cruéis, que depois tudo muda, que suas espinhas vão sumir, que não custa se consultar com um dermatologista, que Bill Gates também era nerd e olha só aonde ele chegou, que com ele podia ser igual depois que passasse por essa fase, que continuasse estudando, que com todo mundo é assim. Mas ele sabia que seu pai não chegara a lugar algum, que ainda usava óculos com lente fundo-de-garrafa e armação de tartaruga e, portanto, era péssimo exemplo a seguir, pessoa menos adequada para conversar sobre o assunto.

Estava, pois, sozinho. Ninguém na escola era tão feio e com tantas espinhas, ninguém parecia se importar muito com o fato de não ser como o cara mais bonito da escola. Ele se importava. E odiava.

Tanto ódio seria explicado no vídeo. Bastava aguardar a resposta do e-mail. Bastava deixar de ser tão frágil. Bastava esperar para apertar o play da câmera para filmar o vídeo, ler o texto que explicaria tudo.

Aguardava a resposta que viria através de um e-mail do outro lado do mundo. Correspondência extremista. Mantivera contato com outras pessoas com quem se identificava. Remotamente cúmplices na forma de odiar, apesar do seu pai dizer o contrário.

Era uma droga porque seu pai sempre dizia o contrário. Promessas de que tudo ia melhorar. E seu pai trabalhava na alfândega, era quem fiscalizaria uma importação, era quem primeiro chegaria à fonte do pedido.

Ele pedira uma arma pela Internet. Mas comprara antes de se lembrar que seu pai trabalhava na alfândega. E o produto estava chegando. Traduzindo do russo ao efetuar a compra, compreendeu que ela chegaria daqui a dois dias. E daqui a dois dias voltaria às aulas. Era perfeito antes de se lembrar que seu pai descobriria, que se decepcionaria por que ele não acreditava nas suas promessas de que tudo ia melhorar.

Mas se havia tanto ódio e estava disposto a tudo, por que se importar que o pai descobrisse? Deveria mandar tudo pelos ares sem pensar em família, nos poucos amigos que mantinha na escola. Mandaria tudo pelos ares!

Não fosse tão frágil e a genética influenciasse tanto suas atitudes, já teria feito antes. Já tinha dinheiro suficiente para um arsenal. Todo o dinheiro da mesada era guardado. Quando lhe perguntavam por que não usava o dinheiro, não ia a um shopping, não chamava uma menina para o cinema, ele dizia que economizava e todos os adultos — sempre sensatos com relação à economia — apoiavam sua iniciativa, sua consciência sobre uma futura crise. E, afinal de contas, ainda que ele quisesse, quem falou que Mariana aceitaria um convite para o cinema? No alto de seus 1,78 metros de altura com apenas quinze anos, Mariana era uma paixão que nem sabia seu nome, que lhe dirigiu a palavra uma única vez quando precisou de uma caneta emprestada. Quem disse que Mariana aceitaria?

Se pensasse muito em Mariana não conseguiria entrar atirando. Ela estaria no seu lugar de sempre, comentando sobre as férias, sobre a viagem com a família, com sua roupa nova, seu cabelo recém cortado nas pontas, recém pintado de louro, com luzes e muita hidratação, que mal perceberia que ele entrara na sala, que empunhava uma arma e chorava por tanto ódio que sentia de todos eles, inclusive de Mariana. Ela nem perceberia. Se estivesse chorando não faria a mínima diferença.

Se estivesse chorando quando entrasse na sala de aula com a mão no gatilho, ouviria o Felipe gritar: “Olha só pessoal, o Garoto Ceroto trouxe o brinquedinho dele pra escola, pra brincar na hora do recreio! Bang, bang! Há, há, há!”. Do jeito que só ele sabia rir dos outros meninos. Felipe que era maior que os outros, que estava namorando a Mariana, que formavam o par perfeito, os mais bonitos da escola.

O vídeo! Não podia se esquecer do vídeo.

Por que a arma já fora comprada, por que já não conseguia suportar a ideia de voltar, era que precisava deixar tudo pronto. Assim que a arma chegasse — porque precisava ter pensamento positivo, porque a arma chegaria —, o vídeo já estaria pronto e disponibilizado na rede para o mundo inteiro assistir. Por que depois que matasse todos eles o vídeo entraria para a história e o conheceriam com o assassino do primeiro ano, não como Garoto Ceroto.

Gravou o vídeo com seriedade, com objetividade, dizendo os porquês, explanando suas justificativas, falando de sua paixão por Mariana, do seu ódio de Felipe. Estava pronto depois de gravado.

Deveria dormir, aguardar mais dois dias.

Esperou com impaciência, editando o vídeo, gravando novamente salientando o ódio de Felipe e o amor por Mariana. Disponibilizou o vídeo antes de conferir a correspondência.

Olhou da janela a chegada do carteiro, o pacote que trazia em mãos. Assinou o recibo. Pegou o ônibus para a escola.

Na escola, se escondeu no banheiro.

Não estava chorando, estava exultante com o fato de o pai não ter descoberto, a arma ter chegado no prazo, o vídeo estar disponibilizado e tudo acontecendo do jeito que havia planejado. A arma havia chegado, o pacote estava no seu colo. Restava abrir. E, a partir de agora, não fraquejar, não olhar para Mariana falando dos cabelos e descrevendo as férias, focar apenas Felipe com cara de espanto quando visse a arma.

Abriu o pacote e escondeu a arma dentro da calça, sob a blusa tomando o máximo de cuidado para que não caísse, para que não disparasse em si mesmo.

“Seu bando de merdas!”, gritou depois que escreveu o endereço do blog na lousa sob a atenção de todos os alunos. Puxou a arma automática, mirou primeiro a testa de Felipe imaginando o estrago que ia fazer. Permitiu-se ainda alguns segundos para ponderar, mas não desistiria, afinal, o vídeo já fora disponibilizado, a arma chegara sem que seu pai descobrisse. Bastava apertar o gatilho. E fez. Felipe gritou:

“Olha só pessoal, o Garoto Ceroto trouxe o brinquedinho dele pra escola, pra brincar na hora do recreio! Bang, bang! Há, há, há!”.

As risadas eram a pior coisa. Então ele chorou por que a arma era de brinquedo, por que não fora barrada na alfândega por ser de plástico, por que nada, nunca, ia mudar.

Fabiano Rodrigues
Enviado por Fabiano Rodrigues em 02/03/2011
Código do texto: T2824543
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