Cansaço
Um grupo, não muito grande, alguns amigos, outros meros conhecidos, um ou outro, recém apresentado. A conversa flui sem qualquer direcionamento, a constante enxurrada de cerveja contribui para tal aleatoriedade. Pontos de vista diversos entram em conflito, boas anedotas agrariam gargalhadas, ruins, também. Um assunto torna-se recorrente, uma mesma garota, torna a trazê-lo à tona, fazendo com que um rapaz, passe a franzer pouco a pouco o cenho. Alguns notam, outros permanecem despercebidos, até um momento no qual o rapaz, que parecia já muito menos jovial ou despreocupado do que costume, antes mesmo dos comentários ácidos da moçoila, fala, num tom nada comum, de raiva contida:
- Não é muita pretensão sua, falar esse tipo de merda de mim, me conhecendo há meia hora?
A moça, ofendida, retruca:
- Ora, falo como vejo, ou eu poderia falar de qualquer outro jeito, de um homem, com mais de 20 anos, desempregado?
Uma expressão, que para a surpresa e consternação dos que o conheciam, semelhante ao ódio, toma conta do rosto do rapaz, que fala sem recato:
- Então, você sabe três coisas sobre mim, que sou homem, tenho mais que 20 anos e não trabalho. Percebe o quanto é estúpido, tentar julgar alguém com tão pouca informação?
Ela começa a balbuciar algo, mas desiste, tanto pelo espanto em como se metamorfosearam as feições do homem que a pouco insultara, antes tão amenas e dóceis, quanto por perceber que ele ainda tinha o que dizer. Ainda há raiva naquela face, mas aqueles possuidores de boa percepção notariam que aquela sensação não era mais direcionada exclusivamente à garota, e que um imenso cansaço mesclava-se à fúria. Ele torna a falar:
- Até pouco tempo atrás, eu tentaria fazer com que você entendesse o porquê de ser tão idiota criar uma imagem de alguém sabendo tão pouco. Iria te explicar, do melhor modo e com muito cuidado, um pouco dos motivos por eu ser, estar, assim, iria me preocupar contigo, como você se sentiria, tentaria fazer com que passasse desta visão mal construída de mim, para que me compreendesse e até gostasse de mim. Mas quer saber? Foda-se.
Ele toma um gigantesco gole de cerveja, antes de prosseguir falando, para tão atônita platéia:
- Cansei, cansei mesmo, de tanta gente imbecil, de cabecinha fechada, inundada de preconceitos, egoísmo, falta de interesse em evoluir. Parece impossível encontrar alguém capaz de pensar, que ninguém é meramente o que aparenta, ou que não podemos acreditar, que nos é possível pesar o valor de uma pessoa, baseando-se somente naquilo que pensamos ser importante. Cada ser humano é único, criado por experiências distintas, e não é simplesmente por sermos diferentes, ou de eventualmente fugirmos daqueles cânones de vida decente e produtiva, que se deve depreciar uma pessoa, especialmente, uma desconhecida.
A mesa fica imersa num silêncio mortuário, uma ou outra respiração mais elevada se alça no ar frio da noite, ou o arrastar de um copo; uma mudez crônica parece tomar conta de todos os interlocutores. A face do rapaz abandonou os traços irados, as mãos, até então cerradas se abriram, ele, que estava completamente retesado, transmitindo inacreditável tensão, desaba, torna-se puro cansaço:
-Desisti, de tentar mudar, por pouco que fosse, o jeito com que percebem as coisas, de compreender a todos, de fazer com que me entendessem, que há muito, mas muito mais na vida, do que aquilo que enxergamos.
Exausto ele se ergue, lança duas notas amassadas na mesa, e se afasta, caminhando pesadamente. Escuta a voz da garota, ignora o tom dela, que poderia tanto ser de desculpas, quanto de escárnio, não importa, ele desistiu.