Brigadeiro e Mel
Eu não me lembrava de ter adormecido. Só dei por mim quando o relógio de pulso, que a essa altura já fora jogado cuidadosamente sobre a mesa de cabeceira, apitou indicando o início de uma nova hora. Descansei ainda mais a cabeça sobre o travesseiro e estiquei o braço, procurando por uma maciez e suavidade que não era a dos lençóis. Não me surpreendi quando percebi que o lugar ao meu lado estava vago. Esfreguei os olhos e conferi os ponteiros que marcavam 3:00 am. A janela estava aberta, e por ela entrava um vento de chuva típico dos dias de frente fria no verão. Eu havia chegado no Rio de Janeiro naquela manhã, vindo de uma chuvosa Porto Alegre. Estava preparado para curtir alguns dias de Sol antes de voltar para minha cidade natal, porém assim que desembarquei percebi que havia trazido o tempo chuvoso e cinzento junto comigo. Procurei algum vestígio de roupa pelo chão, a camisa eu sabia estar fora de questão, por isso me contentei quando consegui achar minha boxer preta em meio aquela bagunça toda. Comecei a andar pelo apartamento espaçoso, sem saber exatamente aonde procurar. Depois de tentar o outro quarto e o escritório decidi ir para a cozinha, que agora me parecia óbvia desde o começo. Como eu imaginava, ela estava lá, sentada sobre a pia e próxima à janela. Antes de fazer qualquer barulho resolvi observar um pouco. Mel tinha uma panela no colo e uma colher de pau na mão esquerda, vestia uma calcinha azul e a minha camiseta preta. Um cheiro doce misturado com outro aroma delicioso impregnava a cozinha. Ela comia o doce com a colher e apoiava os pés no peitoril da janela, deixando que as fortes gotas de chuva batessem e lavassem aqueles pés bronzeados. Ao lado dela na pia havia uma xícara um pouco esquecida, mas de vez em quando ela se lembrava dela e tomava alguns goles. Eu encostei no vão da porta e esqueci do tempo admirando cada gesto daquela mulher. Ela parecia tão jovem. Muito mais jovem do que os seus 25 anos denunciavam. E sentada ali, daquele jeito tão displicente, ela me parecia quase infantil. E eu, no auge dos meus 40 anos, me sentia ainda mais velho longe da minha fonte de juventude. Mel me lembrara o quanto a vida era boa e intensa. Isso porque ela, Mel, era boa e intensa. O empecilho que eu tentei construir com a diferença de idade nunca prosperou. “Eu sempre preferi homens mais velhos mesmo.” Ela dizia quando eu insistia em lembrá-la sobre o assunto. E foi assim com cada barreira que eu tentei erguer. Ela sempre tinha argumentos melhores, que me deixavam desarmado. Eu esbarrei propositalmente na porta, denunciando com o barulho minha presença ali. Ela se virou um pouco assustada, mas depois sorriu, provocando outro sorriso no meu rosto.
-Nada sexy, não é? – ela disse indicando a colher.
-Nadinha. – eu disse brincando, enquanto me aproximava e colocava uma das mãos em seu joelho. Quando cheguei perto vi que o doce em questão na panela era brigadeiro, e o aroma diferente era de café recém passado. Eu estranhei aquela combinação inusitada, e Mel pareceu se divertir com a minha careta.
-Não faz essa cara! É só uma mania.
-Uma mania bem estranha.
-Ah Marcos, nem é tão estranha assim. – eu adorava quando ela falava o meu nome com aquele “s” chiado de carioca. Adorava quando ela me surpreendia com essas manias e idéias loucas e repentinas. Eu adorava a falta de monotonia que emanava de Mel.
-Olha, - ela continuou – o que acontece é que eu gosto de ter as minhas coisas preferidas ao mesmo tempo. Brigadeiro, café e chuva são uma combinação perfeita! Você deveria experimentar.
-Eu dispenso a combinação, mas aceito um pouco desse seu brigadeiro. – ela se fez de difícil, mas acabou me passando a colher do doce. Eu me juntei a ela na bancada da pia, e acabei com os pés na janela e tomando goles de café amargo entre as doces colheradas de brigadeiro. Era bizarra a maneira como Mel me moldava a ela. Eu pegara o seu jeito. Sentia que roubara, sem a intenção de devolver, um pouco da sua juventude e da sua alegria pra mim. E para ela não fazia a menor diferença, ela continuava sempre alegre e intensa. O que eu mais gostava nela eram as horas de fraqueza. Os momentos em que ela se apegava a mim como uma fortaleza, um porto seguro e não me soltava de jeito nenhum. O tempo todo eu só queria abraçá-la apertado e mantê-la junto a mim.
Um dia eu fui obrigado a perceber que Mel também envelheceria. E que ela sozinha não conseguiria ter alegria e juventude suficientes para os dois. A vida foi ingrata com ela, com nós dois. O tempo lhe consumiu como um câncer. Ou o câncer lhe consumiu todo o tempo. Eu fui seu porto seguro, sua fortaleza e quando eu mais precisava fiquei sem a minha.
Eu ainda venho ao Rio de Janeiro para lembrar os dias mais felizes da minha vida. Os dias em que eu ainda tinha uma vida. Mel passou, e eu fui junto com ela. O corpo estava fadado a cumprir a sua meta de tempo, mas a alma estava tão distante quanto ausente, funcionando em stand by. As lembranças às vezes doem, então eu tento mantê-las longe. Mas se elas ficam ausentes por muito tempo dói mais ainda, então toco na ferida e puxo todas elas de volta. Eu nunca procurei, pois sabia que jamais encontraria pessoa tão doce e tão forte. Esperei o tempo passar, se arrastar, desejando com todo ardor o dia em que meu tempo se cumprisse, e eu pudesse, enfim, ter de volta o mel para cortar a amargura.