O CUCO
No meio da madrugada, a mulher acorda, perplexa. Corre os olhos ensonados na escuridão do quarto e por um instante fica escutando o silêncio eterno dos móveis, da casa, das estrelas, quebrado pelo canto do cuco na sala. Depois, ela cutuca o marido que hiberna tranqüilo ao seu lado e diz:
- Anfilófio, eu ouvi um barulho esquisito!
- Hunf... ahn... ahn..., grunhe o tal Anfilófio, nem aí para a sua honorável consorte.
- Anfilófio, ô Anfilófio, eu disse que escutei um barulho esquisito lá na sala!
- Que foi, mulher, quer parar de cutucar que amanhã eu tenho de levantar cedo, sacola...
- Mas Anfilófio, eu estou ouvindo um barulho suspeito...
- Deve ser o vento.
- Na sala, Anfilófio? Ô Anfilófio do céu, seja homem pelo menos uma vez na vida! Levanta e vá lá ver o que é. Leva o guarda-chuva, por precaução...
- Dirce, eu não vou me levantar para ir até a sala, será o benedito? Não tem nada lá! Se quiser, vá você e pronto. Boa noite e não me encha mais o saco.
Silêncio. Passado dez minutos, a mulher volta a cutucar o marido:
- Anfilófio, ô Anfilófio, tá ouvindo agora?
- Ah, meu Jesus Cristo, de novo essa história?
- Mas Anfilófio, pode ser algum ladrão. Vai lá dar uma olhadinha se você gosta de mim.
- Ah, não! Agora é chantagem emocional? Pois fique sabendo que agora é que eu não vou mesmo. Questão de honra. Que roubem nossa casa, taquem fogo no cachorro, esquartejem as crianças, que façam o diabo, mas daqui eu não saio, cáspita! Boa noite!
O marido virou-se de lado, puxou a coberta e resmungou baixinho, mastigando entre os dentes:
- Por que que eu não me casei com a Mirtes?
Mas a mulher não ouviu, não ouvia nada que não lhe interessava. De olhos arregalados, cravados no teto, inconformada e arranhada em seu amor próprio, ela escutava apenas o inóspito barulho na sala martelando em seus ouvidos. Anfilófio já roncava feliz como um boi na manga, quando a Dirce lhe chama mais uma vez, agora sussurrando bem baixinho numa das orelhas dele:
- Anfilófio... Anfilófio... tinha parado, mas começou de novo!
Aqui o respeito aos leitores e a boa educação me impedem de dizer quais foram as inflamadas e pitorescas palavras berradas pelo homem. Contentem-se em saber que não foram poucas as cobras e lagartos e se o marido tivesse uma única gota do sangue de Caim correndo nas veias, ele teria sentado a mão nas fuças da esposa. E com razão, viu, que essa Dirce já tava enchendo os pacová. Depois, concluiu seu casto colóquio com o seguinte:
- E digo mais, se você me acordar de novo com estas bobajadas, se você me chamar novamente, eu me levanto desta cama, saio pela porta da sala e nunca mais em sua vida você ouvirá falar de mim outra vez. Está bem entendido? Então, boa noite, inferno!
A esposa nem piu. Fechou-se em silêncios de girafa e permaneceu escutando o barulho lá na sala, cada vez mais forte, cada vez mais misterioso. Como era mulher, não se conteve por muito tempo e quis chamar mais uma vez pelo marido, mas lembrou-se de como tinha sido difícil arranjar aquele que já não era lá grandes coisas. Então, encheu-se de brios e coragem, armou-se do seu poderoso guarda-chuva que estava encostado atrás da porta e, pé ante pé, no sutil toque da meia de lã com o carpete, caminhou pelo corredor interminável até a sala.
Nisso, o marido que dessa vez apenas fingia dormir, levantou-se também e foi se postar de tocaia atrás da porta, não se sabe se por curiosidade ou medo mesmo. Quando viu que a mulher retornava, meteu-se num pulo dentro da cama, cobrindo-se desajeitadamente como pôde. Pasma com o que vira, disse a Dirce:
- Anfilófio, tem um sapo assistindo televisão na sala!
O marido, abestalhado com a insólita revelação, só conseguiu dizer:
- Na sala?...
Depois concluiu, ironicamente:
- Dirce, você está tomando aqueles remédios de novo? Eu mereço, viu! Aaaah!, quem sabe uma bruxa véia e nariguda não enfeitiçou esse sapo e ele não está precisando de um beijo para voltar a ser gente? Olha que eu já vi de um tudo nesse mundo, até saci com duas pernas!
Mas a Dirce já não ouvia nada do que o marido dizia, pois tinha voltado à sala, para fazer sala ao sapo. Sem público, Anfilófio tornou a deitar-se e creio que conseguiu dormir por algum tempo.
Quando o cuco cantou pela terceira vez, a mulher voltou ao quarto, dessa vez descalça, com um sorriso apolíneo no canto dos lábios e um brilho dionisíaco no fundo dos olhos:
- Anfilófio, desculpe acordá-lo de novo, mas o sapo mandou perguntar se podemos assistir a um filme em pay-per-wiew e debitar o pagamento em sua assinatura?
- Ahn?... tá bom, tá bom. Não se pode dormir mais nessa casa, diacho!
- Então tá. Vou encostar a porta aqui do quarto para você não ser incomodado... O sapo é tão gentil, Anfilófio...
Antes do sol amanhecer o dia, a mulher ainda tornou a acordar o marido novamente. Tinha os cabelos desgrenhados, a respiração alterada, a roupa insinuantemente amarrotada, deixando-se entrever algumas carnes do corpo, detalhes insignificantes que passaram despercebidos aos olhos inocentes do manso Anfilófio. O cuco dormia... Dessa vez, Dirce nem pediu polidamente, mas foi logo interrogando, resoluta, com sede de vida:
- A chave do carro, Anfilófio, não consigo encontrar?!
- Uhn... chave... Chave? Por quê, você vai comprar pão?
- É, Anfilófio, vou comprar pão! A chave? Ah, achei. Tchau, Anfilófio, tô indo.
E foi...
Dizem que os anfíbios têm vida dupla. Dizem que os cucos põem seus ovos para que outros pássaros os choquem. Não sei se Anfilófio sabia disso. Sei apenas que quando ele se levantou naquela manhã já não tinha mais a esposa ao seu lado na cama, já não tinha mais a esposa em sua vida. Caminhou até à sala, cabisbundo e meditabaixo, e reparou que o televisor ainda estava ligado, baixinho, transmitindo ironicamente um programa sobre cornos ilustres da Baviera. Não tinha jeito, Anfilófio era mesmo dos mansos e meteu-se a rir cretinamente da própria desgraça.
Na parede da sala, o cuco cantava seu eterno estribilho, alheio às paixões e angústias dos homens.