Início da década de 60.
O dia parecia explodir em fogos de artifícios quando a menina ouvia o Carteiro gritar na porta: Carteeeeiro! Encomenda do Rio de Janeeeeiro! Saiam correndo as duas, neta e avó, para abrir a grade que antecedia a porta da rua. Eram presentes que o filho mais novo, que foi morar no Rio de Janeiro, mandava para todos.
- anda vó, depressa, vai! É presente do tio!
E o Carteiro: Encomenda do Rio de Janeeeeiro!!, mais alto ainda.
- Já vai! Gritavam as duas
Nunca um ferrolho era tão difícil de abrir. Finalmente o carteiro depositava no chão do hall uma enorme caixa e entregava um recibo que a avó rapidamente assinava e imediatamente a neta gritava:
- Vô, chegou a caixa do tio, vem pegar!
- Vem logo!
Caixa aberta do centro da sala, pacotes e pacores de papel de embalagem para tudo que é lado. A sala parecia um jardim, com cor, perfume e flores de papel crepom.
Abria-se um pacote: corte de tecido para a vó; caixa de sabonete Fleur du Rocaille: uma para cada tia, duas para a avó; caixa grande de sapato para o avô e colônia para barba. .
- E para mim e para mim, cadê o meu presente? Ele não mandou? - Calma menina, ainda tem pacotes por aí.
- Procura, vô; procura, vó!
Livros, cintos, gravatas, para os irmãos, lenços omportados para os cabelos, das irmãs e por aí vai.
De repente ela descobre uma caixa e abre; uma linda boneca de porcelana! Sensação, olhar e alegria indescritíveis! Logo em seguida, outra caixa: uma bolsinha azul royal, de veludo e com fecho dourado, daqueles de duas bolinhas.
-Pra mim, para mim! E é tira-colo (quer dizer, com alcinha para ombro) e um broche de bailarina com pedrinhas azuis!
Mas a estória melhor vai começar: um dia a neta viu na vitrine de uma, das duas sapatarias da cidade, um sapato de verniz, azul igual ao da bolsa, ou quase.
-Olha vó! Eu quero aquele sapato, pede para mainha me dar; pede vó, pede!
E em casa: - Mainha, a senhora precisa ver, é lindo, tem pulseirinha e florzinha pintada aqui, ó (e mostrava o local), a senhora me dá? E foi logo dizendo o preço.
- Este mês não vai ser possível, filha; no próximo eu dou.
- E se acabar?
- Você vai lá e manda o rapaz guardar. E ela foi, na mesma hora. Tinha quase onze anos e a mãe, prevendo o futuro que nem se avizinhava, já a preparava para as lutas e dissabores da vida. Tem muita mãe que é profeta e a dela era, certamente. O mês passou como caracol nas pedras no quintal. Mas enfim, chegou o dia.
- Filha, tome banho, troque de roupa, coloque este dinheiro em sua bolsa e vá comprar seu sapato.
Que contentamento! E que medo! E que baticum no peito e tremelique nas pernas. Ela não gostava de sair sozinha; só saía com a avó. A mãe lecionava o dia todo e não gostava de sair, por razões que só a família sabia e não vem ao caso. Lá vai ela pelo passeio do mesmo lado onde ficava a loja, ainda bem, porque do outro lado moravam umas garotas que gostavam de implicar com ela, gritando: compenetrada, metida a moça! Por que não vem por este lado para a gente ver essa bolsa horrorosa? E neste dia foi demais, ameaçaram atravessar a rua e ela não sabia o que fazer: tirava o dinheiro do bolso; apertava na outra mão; guardava de novo; conferia se a bolsa estava bem fechada. Resultado: o mundo estava se acabando, era o apocalipse. Cadê o dinheiro? Apressou o passo; antes de chegar à loja descobriu que não estava nem na mão nem na bolsa. Voltou para casa tentando ser uma formiga que vai e volta pelo mesmo caminho, olhando para o chão e nada do dinheiro; estava perdida!
- Onde está o sapato?
- Não comprei mãe; soluçava e as palavras emboladas, queriam dizer: perdi o dinheiro.
- O quê? Não entendi.
- As meninas da casa homem da farmácia me xingaram, me pirraçaram, me provocaram. Quando cheguei à loja procurei o dinheiro e não achei. Fiquei nervosa, aquelas vadias! (assim chamava a avó, às meninas mal educadas). E haja lágrima;  Perdi o dinheiro!A senhora vai me castigar? A mãe, quase a chorar também.
- Não minha filha, mês que vem você vai comprar.
- E vai ter, mãe? Dinheiro e sapato?
- Vai sim, com certeza. Você merece.
E teve. A menina saiu a passear contente com a avó; sapato combinando com a bolsa.
“Comme il faût”, disse a mãe, que adorava falar em francês.



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Conto verídico, infância, fatos e sonhos da autora.