Da frigideira pro fogo
23h58min: O ônibus está atrasado mais uma vez. Seu corpo está exausto após 14 horas de trabalho. Trabalhava como uma máquina, sem direito à hora extra. Uma vez queixara-se. – Se não tá satisfeito procure outro! – Urrou o patrão apontando a saída. Baixou a cabeça e pediu desculpas. – Não queria ofender o senhor não! Desculpe! – Amedrontara-se. Liquefizera-se. Ele não tem coragem suficiente para reivindicar seus direitos. Sempre fora um covarde; sempre fala sozinho às sombras. Um mísero salário mínimo. A fome é nervosa; sua barriga dá voltas. Lembra-se do pão dormido; crava seus dentes amarelos; era como se mastigasse pedra. Sonha: um resto de comida de ontem o aguarda na geladeira. – Tomara que ela não tenha parado de funcionar como na semana passada! – Outros aguardavam. Outros explorados: irmãos de sina; irmãos de privações, seca e fome. Emigrantes. Outrora fora o sol inclemente e a aridez do sertão que os castigara. Agora, são os donos das fábricas que os escraviza numa jornada de trabalho sem fim. A fome continua. A dor permanece...
O coletivo aproxima-se. Para! Ele senta-se no meio para aproveitar a luz. Abre uma apostila. Prometera a sua mãe que voltaria sabendo escrever o próprio nome. – Analfabeto não preenche ficha! – Diziam as recepcionistas. Um colega emprestara o material. Sobrara-lhe um pouco de fé. Não era certo que sua vida mudasse se ele aprendesse a ler, contudo, por que não tentar? Era sua única esperança; tudo que restara de seus sonhos...
Uma hora e meia o separa do tão merecido descanso. Talvez consiga dormir umas duas ou três horas, se o boteco, em frente ao seu barraco, estiver fechado. Dias de labuta. Noites insones. Não há descanso. O ônibus para num ponto. Um grupo de jovens de roupas esquisitas entra. Algazarra. Palavrões. Indecências. Sentam-se atrás dele. Idéias estúpidas emitidas por bocas porcas. Ele vira-se, pede que falem um pouco mais baixo. O grupo ri; faz chacota; mergulham como abutres na carniça.
Os outros olham paralisados: não se intrometem. Têm medo. Aguardam! Viram o rosto; fingem que nada vêem ou afundam seus olhos no nada. Um dos membros do grupo manda o ônibus parar; o motorista obedece. Arrastam o corpo desacordado pelo corredor e atiram no passeio. Mandam o motorista prosseguir. Os outros continuam de cabeça baixa. Algum tempo depois. Um carro de polícia passa. Para. Três policiais descem. Chutam o corpo inerte. Um deles abaixa e checa o pulso:
– Ainda está vivo.
– Deve ser viciado. Diz outro.
– Localiza os documentos! Ordena o oficial.
– Nada, senhor!
– Como eu disse, é mais um viciado. Diz o cético.
– Talvez seja traficante. Responde o outro.
– Joga no fundo da viatura. Vamos levar pro Hospital Geral. Determinou o oficial.
Os dois soldados levantaram o corpo e arremessaram no carro, da mesma forma que se faz com um saco de estrume. No hospital, é atendido como indigente. Traumatismo craniano; seis costelas quebradas; fratura do fêmur; perfuração do pulmão esquerdo; braço esquerdo quebrado em três lugares. Quando recobrou a consciência tudo estava escuro. Seus olhos reviravam, contudo, só viam um negrume denso. Sentiu uma presença conhecida: a morte estava à espreita.
A. D. M. Leão - 12/02/2011