INFÂNCIA - Soda quente, nunca mais!
Este episódio aconteceu na escola. Na época desta história, eu contava com sete anos de idade e cursava a primeira série.
O dinheiro era pouco. Minha mãe me dava algumas moedinhas e eu comprava suco artificial para acompanhar o sanduíche trazido de casa.
Algumas vezes juntava dinheiro por três ou quatro dias, para comprar revista em quadrinhos - a mais barata e fininha - na banca da cidade. Nem sabia ler direito, mas gostava das figuras. Guardava todas para debulhar mais tarde, quando já soubesse ler melhor.
Assim como os colegas da época, eu tinha também o hábito de juntar as moedas às de um amigo para uma vaquinha. Com o dinheiro dos dois era possível comprar um pedaço de bolo, chocolate ou pudim. A gente dividia cortando com cuidado, para nenhum dos dois levar vantagem. Éramos honestos. Ao menos um com o outro.
Certa vez tivemos vontade de soda limonada e compramos uma latinha. Não pudemos comprar o refrigerante gelado, pois era mais caro. Fomos ao supermercado e compramos lá mesmo. Estava "quente". Na época não se vendia refrigerante gelado em supermercados, apenas nos bares e padarias.
Indo para a escola, encontramos um dilema: se a molecada nos visse com a lata de soda, nos "atacariam", com suas súplicas do tipo "me dá um gole, por favor!". Combinamos então esconder o refrigerante e beber depois, na hora da saída.
Botamos o miolinho para funcionar, pensando no melhor esconderijo para o nosso tesouro verde-brilhante. Banheiro? Não. Salinha do pátio? Não. Matinho perto da quadra? Nem pensar! Todos os locais que vinham à cabeça podiam ser facilmente descobertos. Até que tive uma idéia. Consegui pensar em um lugar que considerava seguro. Quando revelei ao amigo ele me perguntou se eu era louco. Queria até me dar uns cascudos, mas por fim concordou. O lugar pensado por mim foi atrás do vaso de planta ao lado da SALA DA DIRETORA. Era um vaso grande e a molecada, por medo, nem pensava em chegar ali perto.
Lá fui eu andar no corredor da sala. Estava vazio. Fiz de conta que meus pés eram de algodão e caminhei de mansinho para esconder nosso refresco.
Atrasamo-nos de propósito, para executar aquela arriscada tarefa cerca de dez minutos depois de todos os alunos terem entrado na sala, inclusive os retardatários. Inventamos uma desculpa lavada para a "tia" e entramos na classe.
No fim da aula, olhamos um para o outro, já apreensivos, concentrados no desfecho da missão.
Demos um tempo no pátio, até que o mundaréu de alunos desaparecesse da escola. "Barra limpa", disse meu amigo em voz baixa. O silêncio tomou conta do lugar. A única exceção era o barulho do raspar da palha das vassouras no chão. As serventes limpavam as classes cantando e fazendo ruídos. Era mais do que suficiente para sabermos que elas estavam distantes e ocupadas, não oferecendo perigo.
Atravessamos o perigosíssimo corredor da sala da diretora. O medo tomou conta do meu corpo esbelto e eu fiquei parado. "Vamo lá!", sussurrou bravo o amigo. "Já escondi a lata de manhã. Agora você vai lá e pega", justifiquei o cagaço. Ele não ousou discutir e foi até lá. Um grilo andando seria mais barulhento naquele momento, do que meu astuto amigo. Ele agachou, apanhou a lata e levantou-se. Tentou abrir ali mesmo! Forçou, forçou e nada. "Seu burro! Vai fazer barulho! Vamos sair logo daqui!", sussurrei gritando. Se é que isso é possível...
O garoto escutou a minha bronca, mas não chegou a dar dois passos. Escutamos uma gritaria de crianças, que pareciam descer a escada que ficava justamente ali na outra ponta do corredor. Eu falei para ele: "corre!". Nem precisava pedir. Assustado, ele se preparou para correr e patinou naquele corredor brilhante, recém-encerado. Depois de quatro ou cinco pedaladas sem sair do lugar, ele perdeu o equilíbrio e escorregou. Esborrachou-se com direito a estrondo. Bateu violentamente a lata no chão, que espirrou forte a soda, transformando-se num chafariz.
Em menos de dois segundos, apavorado, o garoto levantou-se e correu. Eu estava em posição menos arriscada e corri também. Egoísta, covarde, disparei cem metros na frente, sem esperar meu amigo me alcançar. Corria como se tivesse foguetes amarrados ao par de ki-chutes e nem olhava para trás. Só consegui vê-lo quando cansei e parei para tomar fôlego, esquinas depois, já perto de casa. Ele continuou correndo, não parou nem para dizer "tchau".
No dia seguinte, não houve sequer o "e aí?" - cumprimento habitual. Ao invés disso, ele desabafou: "soda quente, nunca mais!".