Teoria da fome

Esquerdo. Invertido. Negação perpétua.

E Alice sentou-se à mesa do café. Era tarde, quase noite, onde todas as coisas relevantes acontecem. E por estar só, é que não olhava diretamente em frente. Entretinha-se com o bloco de papel a sua frente, onde anotava o que podia sobre sua vida. Às vezes escrevia mais, do que vivia. E isso era para ela tão importante, que por muitas vezes se ausentava do mundo.

E enquanto o vento soprava, seus longos cabelos castanhos se levantavam, e o café servido ia aos poucos diminuindo a temperatura.

Foi numa dessas lufadas de vento, que se assentou à sua frente um jovem vestido de preto, com um cachecol verde. Tamanho atrevimento, não pôde gerar nem mesmo um protesto de Alice, que não tendo como revidar à surpresa da realidade, fez apenas uma cara de espanto, e logo depois, de interesse, já que a beleza do rapaz era muito intrigante.

-Perdoe-me, senhorita. Não há mais mesas vazias. Será que poderia me assentar aqui, Alice.

-Á vontade. Como sabe meu nome?

-Está escrito no seu caderno.

-Claro.

Voltou ao bloco de notas, fingindo estar entretida.

O rapaz pediu café sem açúcar.

-É escritora?

-Não. Só transcrevo algumas coisas da minha vida para o papel.

-Eu sou escritor.

-Mesmo? Que livros escreveu?

-Digamos que os mais antigos.....

-Não entendi.

-Sou um escritor anacrônico.

Enquanto ele falava, ela percebeu que o rapaz tinha um olho verde e outro azul.

Alice fingiu estar entendendo o que ele disse, mas no fundo, não sabia o que aquelas palavras queriam dizer.

-Você é uma pessoa muito talentosa. Mas tem muito medo de expor o que pensa ao mundo.

-Como sabe disso.

-Sua postura encurvada, o cadeado no bloco de notas, e sua perspicácia nas análises.

-Já leu alguma coisa minha?

-Na verdade sim. Esta folha saiu de sua bolsa enquanto você vinha para cá. E eu a procurei para entregar, não sem antes ler o que estava escrito. Tem opiniões muito interessantes sobre Deus. Algo que não poderia eu escrever melhor.

-O senhor está ficando invasivo. Acho que vou embora.

-Por favor, não se ofenda com minha intromissão. Permita que eu lhe pague um outro café. O seu já esfriou. É o mínimo que posso fazer.

Alice se assentou novamente, já desconcertada. Tomou o café que veio em seguida, enquanto o rapaz a olhava.

-Qual o seu nome?

-Diogo.

Ela olhava para o rapaz, sem saber se o que sentia era bom ou ruim. O nome retumbava dentro de seu peito, como se aquele momento fosse significar muita coisa em sua vida.

-Você me parece uma menina muito assustada. Não se preocupe, pois não vou lhe fazer mal. Sou uma pessoa tão solitária quanto você. Só queria alguém com quem pudesse conversar um pouco. Mas se te faço sentir-se mal, eu vou embora.

-Imagine. Eu me assustei um pouco com seu jeito direto. Me diga, sobre o que escreve.

-Sobre história. De certa forma eu faço a história....

-Como assim.

-Quem conta a história é o detentor da verdade. Então, me sinto um pouco senhor da história dos homens.

-Você fala de maneira estranha.

-Não mesmo. Me acho até muito claro. Até previsível....

Nesse momento, todos os anjos do céu e do inferno já haviam chegado até o café.

As sombras se esgueiravam pelas ruas. E o rufar das asas dos anjos, fazia a ventania aumentar.

Alice sentia um frio nos ossos, como nunca sentira antes. E os anjos aguardavam o desenrolar das coisas.

-Quero lhe fazer uma proposta.

-Como?

-Não se preocupe. É proposta de trabalho. Quero que seja minha assistente, e me ajude num projeto que tenho, sobre contos de fadas.

-Não sei....

-É simples. Vamos reescrever alguns deles. Na sua forma original. Apenas uma análise mais real das situações. Pago muito bem.

-Não entendi. As coisas não funcionam desta forma. O que você quer realmente de mim????

Nesse momento, os sinos da igreja começam a dobrar, e nuvens começam a se aglomerar.

-Quero apenas desenvolver seu talento. É muito grande. E com certeza, poderá seduzir uma quantidade inimaginável de leitores. Não é isso que você sempre quis? Ter sua obra exposta de maneira arrasadora no mundo? Todos a lendo a admirando? Eu conheço seu íntimo, Alice. Sei que por trás dessa sua indiferença para com o mundo e as pessoas, existe uma vontade imensa de ser incensada, amada, admirada. E eu estou lhe oferecendo esta oportunidade. Desde que se dedique a mim, é claro.

-Sim, eu desejo. Mas por outro lado, se tenho vaidade, tenho também noção de meus limites. E não tenho força o suficiente para agüentar a admiração forçada. Me desculpe, mas minha resposta é não.

No alto do prédio, Gabriel deu um sorriso satisfeito. Missão cumprida.

Um a um, os anjos se retiraram, e os condenados se arrastaram ao inferno, cantando alguma coisa de Wagner....

Diogo se levantou da mesa, e deu um sorriso estranho para Alice.

-Você é dura, minha querida. Mas se mudar de idéia, me procure, Marianne....

-Meu nome é Alice....

-Não, seu nome é Marianne.

EDUARDO PAIXÃO
Enviado por EDUARDO PAIXÃO em 03/11/2006
Código do texto: T281100