A Inimiga
A mulher queria entrar no banheiro, tomar um bom banho. Ia sair, fazer pouca coisa, mas não estava acostumada a sair sem banho. Tinha que ficar limpinha, cheirosinha, era uma coisa chamada respeito. A si mesma e ao outro, também tinha aprendido bem cedo. Era a forma mais sublime de amor, o respeito. Quem não se respeita, não respeita o outro. Não gostava de estar em lugares onde o cheiro do outro a incomodava e por essa razão buscava sempre estar perfumada em lugares públicos. O que não quero para mim, não quero para ninguém, assim é que cumpria o preceito de amar ao próximo como a si mesma. A mulher queria entrar no banheiro, mas não conseguia. Estacou ali na entrada, as roupas que iria trocar dobradas em um braço, o outro segurando o batente na vã tentativa de tomar um impulso e atravessar o obstáculo que a impedia de entrar. Mas cadê a coragem? Ficaram assim por um tempo tão grande quanto à eternidade das salas de espera de um consultório médico, ela e o obstáculo intransponível. A mulher tinha certeza que deveria estar recebendo uma mensagem qualquer, mas recusava-se a ouvir. Não queria saber de papo com aquele ser asqueroso que impedia sua entrada no banheiro. Sentiu-se mal só de sentir asco por aquela criatura, afinal tinham sido criadas pelo mesmo cientista, era preciso que houvesse algum propósito na vida delas, mas não conseguia atinar qual fosse. Não podia nem em pensamento considerar que o peso da vida das duas, dela e da criatura, fosse o mesmo frente a quem as criara. Isso seria abominável, irracional. Sentiu uma vontade enorme de gritar, mas o grito seria uma confissão de sua pequeneza e a igualaria certamente a insignificante e nojenta criatura. Controlou o grito e o pânico, decidida a traçar uma estratégia que a livrasse daquela situação sem incorrer em um crime maior. Não queria simplesmente matar o obstáculo e chegou a fazer uma espécie de prece implorando que a outra usasse de sua forma de inteligência e se afastasse dali. Que se escondesse em seu refúgio escuro e sujo, mas permitisse que ela tomasse o seu banho e ficasse mais limpa ainda do que já estava. Tinha horror só de pensar no clímax, de como seria o fim de tudo: aquele barulho horrível ia persegui-la pelo resto dos seus dias, aquele clique do chinelo amassando forte contra o chão o bicho nojento que a impedia de entrar no banheiro. Não achou justo acabar assim, com um simples clique, colocar fim na vida da outra. Era tão pequenina, certamente nem havia ainda percorrido a metade do seu ciclo de vida, certamente nem mesmo procriara milhares de outros nojentinhos que viriam mais cedo ou mais tarde infestar a casa e infernizar a sua vida. Tentou por todas as formas outros métodos de afastamento, pediu, implorou, enxotou como se fosse uma galinha, bateu o pé no chão, pulou com os dois pés e nada. Evitou gritar para não chamar atenção, se isso fizesse alguém poderia vir e resolver a situação da forma mais prática possível, mas ela, a mulher, era inimiga da prática. Queria uma solução diferente. Uma solução mental que mostrasse que as duas eram seres diferentes. Foi aí então que uma luz se acendeu na cabeça da mulher e ela resolveu se abaixar de mansinho e se aproximar da criatura. E quase riu, no seu espanto: Senhor de Todas as Criaturas, a barata não reagiu porque está morta. E feliz concluiu:E não fui eu quem matei! Mesmo assim foi em busca de alguém para remover o corpo.