BIGODES

Lá em casa ninguém gostava do bigode do meu pai. “bigode feio”. “Seu pai é muito nogento com aquele bigode dele”. “Nunca limpa o bigode”. Meu pai não ligava muito quando minha vó falava . Ele dizia “Sua vó é retardada”. Nunca direto pra ela. Só para os amigos e claro, longe de minha mãe, que também odiava seu bigode. Era vasto e descuidado. Não aparava e muitas vezes os pêlos do nariz desciam e se misturavam com o resto. Parecia de propósito. Acho que até eu tinha nojo do bigode dele. As coisas ficaram pior quando começou a engordar. Não tinha vergonha. Andava a rua inteira sem camisa com aquela barriga enorme descendo sobre as calças surradas. Encostava com uma das mãos na parede de Seu Carlos e olhava sem disfarçar pra todas mulheres que passavam. O pessoal do bar achava normal a maneira como o bigode dele apontava para o sexo das moças. Elas gostavam e antes de virar a rua sempre dava uma olhadinha. Faziam-se chateadas. Mentirosas!. Gostavam do descuido daqueles olhos grandes sobre elas. Os outros homem, muitas vezes faziam igual. Não eram natural. Eram esnobados. Não causavam grande coisa nelas. Não se sentiam provocadas ou desrepeitadas.

Uma vez, jogando sinuca perguntei porque ele não fazia o bigode só pra gente ver com ele era. Olhou pra mim de um jeito que nunca esqueci. Fiquei assombrado. Naquela tarde ganhou todas as partidas. Jogou humilhando. Não me deu chance. Sentia em cada tacada a opinião do seu bigode.

Assim a rua conhecia meu pai. Ninguém falava do resto. Do descuido, da barriga, da maneira como tirava a roupa das mulheres quando passavam. Dos pêlos do nariz. Das roupas surradas e das raparigas que vez ou outra assombrava a segurança de minha mãe.

Quando alguém lá em casa pegava no seu pé, ele sumia durante dias. Ou noites. Ou horas. Dependia da briga. O bigode voltava bêbado e incapaz

De tolerar qualquer coisa. A paz estava de volta.

Meu pai morreu muito cedo, mais cedo que todo mundo. Foi um choque grande pra toda rua. Ninguém esperava. “tao cheio de vida”. “homem tão bom”. “coitado”. “mas ele tava doente?” muitas bobozeiras assim ficavam no ouvido da gente. Lá no interior os difuntos são banhados em casa. Lembro

Que minha avó e minha mãe ficaram horas presa no quarto com ele. De vez em quando uma delas saia do quarto pra trocar a água da bacia. Minha mãe tinha no rosto uma tristeza empedrada, meio aérea, meio morta como ele. Já minha avó fluia em sua tristeza. As lágrimas desciam na certeza de que podiam descer. Lá pelas tantas, uma das duas gritou . “Já está pronto, pode trazer o caixão, Seu Zé ”. Deu um frio na barriga ouvir aquilo. Dé lá do outro quarto vi aquele homem baixinho atravessando a sala com um caixão enorme na cabeça. As duas ajudaram a descer. A porta um pouco aberta revelou um corpo nu estirado na cama. Nessa hora sai. Fui andar na varanda, acabei esticando mais um pouco e fui até a praça. Muito tempo sentado por lá e pensando nas partidas de sinuca. Quando voltei o caixão já estava no meio da sala. Escorado por duas cadeiras de madeira, que estão com a gente desde que nasci. Velas grandes foram colocadas ao seu redor. Um cheiro morno ascendia pela casa. Muitas pessoas por ali. Parentes distantes, amigos do bar. Alguns rostos desconhecidos. Um véu vagabundo cobria seu rosto. Uma tristeza estranha me apertou por dentro. Parecia mais medo que tristeza. Um choro cheio de duvidas engrossou minha garganta. Atrás do véu eu já estava vendo o que não queria ver. Levantei só pra ter certeza. Seus olhos exagerados de fechados, como se não quisesse ver nada daquilo. Finalmente elas conseguiram. Estava sem bigodes.