Inevitável

Numa mesa de bar, dois amigos.

- Como assim é difícil pensar no inevitável?

- Pra mim o inevitável não é palpável, inevitável é somente o que aceitamos como tal.

- Que ideia idiota.

- Idiota nada, simplesmente o conceito me é intragável.

- É idiota, mas se é o que você quer, torno o conceito tão sólido, que quando ele lhe atingir, vai quebrar-lhe essa cabeça dura.

- Boa sorte.

- Imagine-se em uma pista, tão longa que se estende até aonde os olhos podem ver, e coloque um belo alazão há mil milhas de distância.

- Uhum.

- Agora, comece a correr, eventual e indubtávelmente, ele lhe alcança. Já sabe o nome dele?

- Não me vem nada que pareça correto à mente.

- Ora, o nome dele é morte. A ideia já tem forma?

- Do inevitável?

- Sim, da maior inevitabilidade a qual o homem está sujeito.

- Certo, até que tem alguma lógica.

- Mas não paremos por aqui. Alguma vez já sentiu aquele aperto no peito? Um calafrio, que rasteja lentamente pela espinha? Ou quem sabe aquela sensação, de que a escuridão se encontra muito mais escura do que deveria?

-Sim, algo semelhante mas...

-Esse é o trote, o galope, a disparada que ele inicia a medida em que enrugamos e nossos cabelos perdem a cor. É inevitável que não o sintamos.

-É estranho, mas creio que lhe compreendo.

- Já acordou em plena madrugada, com os olhos arregalados, a boca seca, a arritimia no coração, e os pelos da nuca arrepiados?

- Vez ou outra, tenho de admitir.

- Foi o relinchar, que exala uma respiração gélida, quase tão próximo quanto o toque de uma mãe, que o deixou assim.

- ...

-É meu caro, inevitável. Tanto quanto debruçar-se sobre o parapeito de um arranha céu, e imaginar como seria a queda, e o depois. Este é o desejo, inevitável eu reitero, de virar-se e abraçar o alazão, encarar seus olhos negros, e trançar-lhe a crina com os dedos. Sabe porque?

- Não.

- Pois o desconhecido, inevitávelmente, atraí.

- E inevitávelmente, esta conversa me aborrece.

- Não minta, ou se faça de tolo, sabe muito bem a diferenciar medo de aborrecimento.

- Perdeu a graça.

- Ora, ria comigo, pois como poderia ser o ceifador um quadrupede comedor de feno? Tudo chacota, afinal, amigos fazem chacota uns com os outros, não fazem? E já sou seu amigo desde que encheste teus pulmões com ar pela primeira vez.

- Hein?

- Lógico que nem tudo foi pilhéria, só a parte do cavalo.

- Como assim?

- O inevitável.

- O que tem ele?

- É verdadeiro. Não sou quadrupede, mas sou inevitável, e cedo ou tarde, te alcanço.

- ...

- Mas não tema, não te arrastarei entre berros, lamúrias e protestos. Tenho carinho por ti, e por todos que hei de levar, aninhados em meu vasto busto. Mas por ti, sinto mais, e dar-te-ei uma dádiva, colossal, por mais ínfima que possa parecer.

Levanta e pede a saideira, despede-te do dono do bar, que fora eu, foi o único que te acompanhou ao longo dos anos. Sorve então tua bebida, sem pressa, aos tragos ou goles minúsculos, é teu o poder de escolha. E então, quando o licor tiver-se esgotado, te levo comigo, em meus braços fortes, vai tua alma leve. Só te peço uma coisa, é simples, fê-la milhões de vezes, e para gente, que por ti nutria afeto centesimal perto do meu.

Sorri! Pois espíritos chorosos, já levei demais, já vi demais, e meu peito já está cheio. Alivia meu pesar, faz do meu fardo leve, vem de bom grado, em paz. E não me despeje injustiças, imprecauções, não me chame de bandido, velhaco, insensível ou indiferente. Pois pensa cá comigo, se sofre horrores o homem, com a morte de um ou de outro, tem dó de mim, que estou presente em todas. Tem dó de mim, que os carrego com cuidado materno, e sou chamado de carrasco. Tem dó de mim, que amo todos, e tenho por dever eterno, privar-lhes da vida, e não sentir nada fora seu desafeto.

Se lhe apraz, mostra piedade, de quem não pode fazer mesmo.

Pietro Tyszka
Enviado por Pietro Tyszka em 21/02/2011
Código do texto: T2805759
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