Relatório cotidiano
Passeando por essa cidade imunda, sou testemunha da decrepitude das pessoas. Hipócritas, corruptas, indignas, nojentas, asquerosas, mentirosas. Como conseguem conviver assim?
O pouco tempo em que estou aqui, não me impede de ter completa certeza do quão insignificantes todos são. Prepotentes, arrogantes em sua ausência de conhecimento. É notável todo o odor pútrido do lixo humano armazenado em apenas um local, me levando a concluir uma coisa: o lixo existe em todas as cidades em que passei. Relembrando de cada uma delas, sinto que seja meramente uma virulência que se alastra e dizima quem ataca, esta ignorância prepotente consome a dignidade primordial de cada um. O senso comum está destroçado em um senso superficializado de falsos moralismos. Os sentimentos verdadeiros e irredutíveis caíram no ostracismo sendo mascaradas por uma hipocrisia banal. O sentido de socialização é somente uma ilusória capa de proteção contra a chuva torrencial que a solidão representa. Mas são tolos, capas rasgam.
É deplorável a situação de todos. Como aquele homem lá, sentado com sua barriga sebosa à mostra, conversando assuntos fúteis e inúteis. Ele vai morrer. O outro, o careca de bigode por fazer que sorri de maneira estúpida quando vê passar uma garotinha de treze anos, também. Mas não sabem ainda. Fingem que não sabem. Não ligam pra essas coisas agora, para no momento derradeiro implorarem por perdão a todos os outros que magoaram e para a menininha de treze anos ignorar sua atitude pois não sabia o que fazia naquela época. Todos iguais. Esse futuro inevitável se torna complexo demais para pensar. É uma palavra profana, Morte. É pecaminoso pensar que morrerei amanhã. Que terei um câncer mês que vem e pouco tempo de vida. A vida deve ser aproveitada para embaçar qualquer momento trágico que com certeza virá. Pura besteira de mentes pequenas. Tudo ao pensar em morte é sempre chocante. Mas não é chocante masturbar-se imaginando a menina de treze anos fazendo coisas que nem mesmo uma atriz de filmes pornográficos faria. Não, pensar nela não é chocante. Enquanto se está no esgoto que é seu quarto escondido dos amigos, vizinhos ou quem poderá lhe acusar e apontar o dedo. Não, não é. Fazer, nunca! É criminoso, é hediondo, passível das maiores punições conhecidas. “Não, nem imagine uma coisa dessas , meu Deus!” é o que diria aquela velha mulher gorda e preta que atravessa a rua. Preta não, seu racista! Como pude cometer um engano tão grande de me referir a sua cor da pele? Como diriam... a sim, ela é afrodescendente. Não há tolerância a pensamentos e atitudes diferentes do socialmente aceitável. A quebra de tabus é crime. Sempre foi. E quem tem a proeza de conseguir uma é excluído, chutado, banido e se torna um proscrito andarilho nos confins do inferno social para depois de cem anos de sua morte ser lembrado como o gênio incompreendido. E isso se repete, sempre e sempre entre os burgueses, os políticos, os ricos, os pobres, os sem status, os idiotas. São todos iguais e sempre foram.
Os homens mandam, mulheres devem obedecer. Mulheres não podem ser mais fortes que homens. Mulher chora. Mulher não lidera. Mulher forte? Sapatão! Líderes só podem ser homens, machos, e tão ridículos quanto todos os outros. Tão ridículo quanto a mulher fraca, quanto a mulher forte, quanto o homem fraco, quanto o homem forte.
Não existe mais humor decente. Os cretinos só conseguem alcançar o ápice da graça do riso com referências ao tamanho do pênis alheio. Não conte nada além disso, fere os costumes tradicionais da família.Não ria do outro ele pode te processar. Leve a sério. Tenha respeito.
Não use roupas coloridas demais. Não use roupas escuras demais. Não use muita roupa. Use roupas.
Seja religioso, eles são santos, homens escolhidos para servir pelo celibato. Há! Celibato uma ova! Rota de fuga pela falta de coragem em assumirem seus desejos mais íntimos e alternativos.
Seja religiosa. “Papai mandou ser uma menina certinha da igreja e obedecer a Deus”. A força traumática de uma simples frase sobre a cabeça fraca de uma criança ingênua que não vê que é alvo do desejo inconsciente de uma pureza perdida por anos a fio no mundo desgovernado pela razão de seu próprio e querido pai. Pura ingenuidade.
Está tudo confuso, nada é o que mostra ser. Aquele homem generoso de terno e gravata que deu esmola para o fedorento mendigo da calçada não pensou que sua demosntração de pedância resultaria na satisfação de um viciado, que pela ignorância vivida até então descobriu no crack o único meio de viver decentemente. Não, o homem simplesmente se imaginou voltando no outro dia ao trabalho e batendo em seu peito, orgulhosamente pelo seu feito extraordinário, falando em alto e bom som para seus colegas ouvirem e desejarem serem tão bons quanto ele. Falou também ao seu deus, de joelhos pedindo que este guarde um lugar no seu paraíso pelo seu belo ato de caridade pelo próximo. Sim, mas que seu lugar seja bem afastado do fedor do mendigo, rá!
Mundo caótico, emporcalhado de sonhos disformes, mentiras desregradas e risos enfadonhos.
É uma pena, de verdade. O lugar seria brilhante. Tinha um potencial incontestável. Terreno propício a todo tipo de beleza que por azar do destino não veio a alcançar. Mas é esta a realidade. Não há mais volta. Isto se alastrou e carcomeu todos os que vivem aqui. Eu me incluo, não há como negar. Me tornei um deles, e ficarei por aqui mesmo. Esta praga não deve se espalhar a nenhum outro planeta mais. Finalizo aqui, minha análise sobre a Terra e os autorizo a destruirem tudo, companheiros. Iniciar a explosão. Câmbio e desligo.