História de Clarisse I
E lá estava eu mais uma vez absorta em pensamentos ignorando por completo a existência de outras pessoas ao meu redor.
Não é que eu não as vesse, simplesmente ignorava tais “companhias” temendo um dia tornar-me igual a elas, mais uma hipócrita fingindo a felicidade que não tinha.
Já havia passado por diversas cidades e escolas diferentes, resultado da vida de pessoas responsáveis e ocupadas (com seus próprios interesses) como meus pais, e posso afirmar que as pessoas são as mesmas, mudam os rostos e a conta bancária, mas ainda são exatamente as mesmas.
A aula era boa, literatura, matéria pela qual só substituía por sociologia, levando em consideração que a história as completa.
O dia, porém não era dos melhores, já havia rejeitado os poucos amigos que me restavam, e todas aquelas vozes indecifráveis discutindo assuntos banais me martirizavam de forma automática e constante.
Eu era a garota de olhos castanhos ou pretos que bem podiam ser azuis, cabelos escuros, ondulados e sem forma definida.
Na escola poucos amigos do qual eu não fazia questão, tão pouco eles de mim.
Não é que eu não gostasse de companhia ou amasse a solidão, apenas havia me acostumado com ela de forma até então, irrevogável.
Era uma escola muito popular entre os burgueses da região, eu não era rica mais meus pais gostavam de agir assim, era uma forma de tentar desesperadamente introduzir na sociedade que tanto cobiçavam. Tentativa ridícula e vã, pois eram tratados como caipiras, pela elite que controlava (ou roubava) a cidade.
Esta relativamente pequena e litorânea, no Rio de Janeiro, o ponto de “descanso” de diversas personalidades políticas, que ignoravam por completo qualquer problema social da mesma.
A verba lhes interessava tanto quanto a fachada de cidadãos honestos, todos da cidade conheciam tais absurdos, mas sentiam-se reprimidos pelo medo, uma gente que de tão humilde não ousaria desafiar a poderosa corja de influência e poder.
Minha família, porém, contribuía com o que fosse necessário para estabilizar essa situação, meu pai exercia advocacia e minha mãe, alguma coisa desonesta muito parecida com isso.
Seu filho, meu irmão, o orgulho da família. Cursava direito para seguir o mesmo caminho sujo dos pais.
Eu não fazia muito diferença para eles, perguntar “Como foi seu dia” não era exatamente meu conceito de carinho (mas no fundo duvidava que se o recebesse, iria devolvê-lo a quem quer que fosse).
Eu não tinha avós, nem primos ou tios. Essa era minha família feliz. Tão fachada quanto o excelente governo da cidadezinha ou desse país.
Cidade, escola, amigos, dinheiro e família, tudo tão enlouquecedor, perfeito; resta-me o vazio.
Poderia falar dos namorados que nunca tive, não que algo de importante houvesse restado no fundo dos baús impermeáveis de minha memória, simplesmente não há nada.
Lembro-me de garotos ora ricos, ora pobres, com as mesmas expressões, roupas e falas.
Meu gosto forçado pela solidão e a estupidez dos rapazes, contribuíam para que eu os detestasse um a um poucos dias depois.
Havia uma exceção, não que isso me importe de alguma maneira agora, mas pessoas como eu podem amar até as últimas conseqüências, até que não sobre mais nada. E não sobrou; por um extenso período nada dentro de mim restou.
Mais uma vez; o vazio.
Então era outra festa, outra sexta-feira, mas sempre voltava muito cedo para casa. Sentia-me extremamente antiquada, no lugar errado e tão dominada pela súbita compreensão da solidão, que pode ser muito pior quando não se está só.
Eu gostava de coisas simples. Meu quarto, meus livros, meus discos. Com eles podia perder-me por horas e horas. Prendia-me na leitura como uma fuga fugaz. Gostava de todos os livros clássicos assim como os atuais, mas mergulhava nos relatos de revoluções e pessoas que mudaram o mundo (coisa que eu, em minha freqüente insignificância, jamais faria).
Sim, eu era uma garota revoltada e idealista que amava poesia e me perdia em música antiga.
Inserida em um contexto histórico que foi definido muito antes de eu nascer. A elite no poder, os pobres a mercê da miséria.
Em uma cidade que acobertava tais atitudes com submissão e uma família que fazia parte de toda essa sujeira. Cercada por pessoas iguais e manipuláveis.
Eu nunca seria nada, nunca conheceria ninguém e ignoraria o sentido real e mais profundo da existência humana; viver, aprender e amar.
Eu sabia que não era loucura, apenas me sentia no direito de lutar por uma sociedade mais justa, de acreditar no que achava certo, estava cansada de engolir tudo como se não me fizesse mal.
Sentia-me só, gritando no vazio, tentando exprimir uma verdade que ninguém jamais ouviria, não encontrava meios de expressar tamanha revolta com tudo que via ao meu redor.
Sentia-me tão presa e tão perdida, sufocada pela ausência quase total de sentido de minha vida e idéias incompreendidas.
Meus livros, meus medos, meus discos e principalmente meus vícios eram tudo que eu possuía de melhor, ou pior.
Precisava fazer-me real, cansada desse incessante ato de encenar. Descobrir minhas verdades e mudar... Precisava antes de tudo mudar minha existência medíocre e fazer tudo o que abri mão, por idéias que não faziam sentido nesse mundo de falsidades.
Trancaram a saída e alimentavam-me do mais doce veneno; alimentavam-me.
Entre lágrimas compulsivas; o desejo da morte. Olhando de perto não é loucura!
Pobre de espírito, insana, covarde, medíocre, passiva e ridiculamente estúpida.
Definição perfeita do EU.
Faltavam-me os motivos então permanecia atenta ao primeiro “deslize”.
NÃO, minha vida não era perfeita!
Cansada desses estranhos “civilizados” que queriam mais que tudo fugir, cansada de viver um presente sem futuro, cansada de ser um fantasma solitário...
Parti, deixando tudo o que não tinha para trás, parti.
(Continuação em outras publicações)