Olhos Descuidados.

Som de sirene: intermitente, perene, aguda e constante… não sei se é som de bombeiro, polícia ou ambulância, não os vejo por ora, só sei que vem de longe. Estou numa cidade, num desses centros comerciais: há prédios altos, embora as avenidas não tenham movimento algum e os carros estejam parados nas ruas com as portas abertas. Carros grandes, carros pequenos… todos parados e abandonados, com as portas escancaradas como se algo tivesse acontecido obrigando quem estivesse dentro a abandoná-los, de súbito, numa fuga inesperada. Embora parecesse… não foi o que aconteceu. Estavam todos ali, não nos carros, nas calçadas, caminhando com a disciplina de um exército: todos numa mesma velocidade e numa mesma direção, como formigas seguindo a rota do formigueiro, sem atropelos, num mesmo compasso… estavam lá, ninguém havia fugido!

As pessoas no meu lado da rua caminham todas numa mesma direção, só eu, não sei porque, ando na direção oposta a elas. Penso que poderia mudar a direção para caminhar igual a todos — tento, mas não consigo — e, não resistindo ao impulso de contrariar o fluxo da via, prossigo caminhando em sentido contrário. Fico atordoado por não conseguir mudar o rumo do meu caminhar, fato estranho esse, como se a velocidade do passo e a direção da caminhada tivessem sidos impostas a mim por uma força interior que me motiva a continuar andando.

Ninguém me olha nos olhos: todos vem ao meu encontro, esbarram em mim, chegam a pisar nos meus pés, mas não me olham no olhos… miram o horizonte, rumo ao sul, sem nenhum traço de expressão! Caminham todos numa obstinação doentia, persistente, sem raiva, pressa, angústia ou qualquer outro sentimento que se expresse nos músculos da face… são semblantes lisos e sem expressão. Não são pessoas, com certeza não são! São um fluxo…

Viro o rosto e percebo que no outro lado da avenida dá-se o oposto: em vez de caminharem na direção contrária, lá todos caminham no mesmo sentido que eu… atravesso então a rua e, incomodado com os pisões, vou ao encontro dos outros andarilhos para tentar caminhar na direção que me foi imposta sem ser atropelado pelo caminhar contrário desses tipos doentios que me aterrorizam. É por o pé direito na outra calçada para ver diante dos meus olhos a cena anterior da qual fugi a poucos instantes: homens e mulheres caminhando em direção contrária a minha, olhos fixos no horizonte (já nem sei mais se é norte ou sul), rostos sem expressão, esbarrando e pisando nos meus pés, me deixando mais confuso do que estava antes. É como se um espelho posto imperceptivelmente no outro lado da rua simulasse um outro grupo de pessoas caminhando no mesmo sentido que o meu, me dando a impressão de que lá eu encontraria apoio, mas não! Não há esse outro lado. Atravessar a rua para buscá-lo (crendo no truque) é, inevitavelmente, voltar ao ponto de onde havia partido.

O som das sirenes ecoa agora com mais força chegando a um nível quase perturbador. Diante daquele cenário bizarro que me angustiava encontro alguém diferente dos pálidos corpos que andavam (quase vivos… quase mortos…) ao meu redor. Alguém que vai a minha frente caminhando também em direção oposta ao fluxo. Ele caminha obstinado, quase como se tivesse ciência da própria predestinação, com bravura e sem temor. Ele está sempre a minha frente — só vejo suas costas — mas presumo sua valentia pelo jeito de caminhar: passos largos e firmes, cabeça ergida e nunca numa posição defensiva: ele esbarra nos ´´outros“ e em vez de fazer-se vítima dos safanões, ele mesmo é quem discretamente os desfere, um valente por sinal!

Uma ambulância chega, percebo que a sirene intermitente, perene, aguda e constante… era dela. Ela vem — desde uns duzentos metros de distância, o limite do alcance que a vista abarca — dirigida em desespero, com seu alarme estérico e inútil, esbarrando nos carros, visto estarem eles no meio da avenida abandonados e dispostos de forma a atrapalhar sua passagem. Ela se aproxima, chega de uma vez, ensaia estacionar no meio fio, mas antes disso pára. Paro eu. Param todos, inclusive aquele a quem há pouco havia descrito. Uma pessoa apenas desce da ambulância e descendo… desce olhando fixo nos meus olhos. Era uma mulher forte, negra, vestida de branco, uma socorrista, presumo. Com um olhar doce ela me olha… olhar doce mas invasivo… daqueles olhares que te descobrem em três segundos, que te enchergam por dentro a ponto de te fazer querer olhar para o chão… foi assim que ela me olhou por aqueles três segundos de toda a minha vida.

— Ajude-me com ele sim?

ela foi abrindo a porta traseira da ambulância e me pediu que entrasse para juda-la a tirar um corpo que estava dentro do veículo. Pensando melhor não sei se era bem um corpo… acredito que corpos mortos não sejam trazidos em

ambulâncias, especialmente naquela velocidade que me pareceu ser a pressa de um resgate e não a mansidão de um cortejo fúnebre. Presumi que estava morto porque estava todo coberto por um manto da cabeça aos pés.

— Isso mesmo rapaz, suspenda a maca com cuidado que eu a recebo aqui embaixo. Assim, isso mesmo… muito bem!

— Porque ele está coberto? Ele está morto?

Ela demorou um pouco pra responder e antes de me entregar mais palavras e enigmas confusos e sem significado imediato me encarou mais uma vez com os olhos de quem enxerga o que olha muito além das formas aparentes que olhos comuns enxergariam.

— Ele está coberto para que você não veja.

— Para que eu não o veja?

— Não: não é para que você não ´´o“ veja, mas para que você não veja!

Ouvi aquelas palavras com calafrios e entalos sucessivos na garganta. Aquilo não fazia sentido nenhum e talvez por isso mesmo me causasse tanto terror.

— Não estou entendendendo nada! Você sabia que eu ia estar aqui: nesse exato local e nesse exato momento?

— O que você acha? É melhor que você descubra isso sozinho.

— Mas que lugar é esse? Quem são essas pessoas estranhas que caminham contra mim a custa de esbarrões?

Um silêncio se fez naquele momento. Ela me olhava nos olhos por um longo instante como se estivesse me avaliando antes de dizer alguma coisa sobre a estranheza daquela situação.

— Me diga: quem são eles? Você sabe?

— Sei.

— Pois diga! Diga quem são essas pessoas?

A sirene que até então continuava ligada desligou-se subitamente. Um forte silêncio pairou sobre aquele lugar, podia-se escutar o som da saliva sendo tragada garganta abaixo, o som do coração bombeando sangue por todas as válvulas, o assobio do vento rasgando a avenida por entre os prédios… e nós ali encarando um ao outro… esperando reações… exigindo respostas.

— Você realmente não sabe não é?

— Não sei o que?

— Não sabe onde está… não sabe quem é!

— Não! E estou começando a acreditar que voce também não sabe.

— ” São ” você… é você, foi sempre você Abraão.

— Abraão? Mas meu nome não é… ora…

— Olhe para os lados querido.

Olhava tão fixamente nos olhos daquela mulher que não havia percebido o que tinha acontecido: todos os meus opositores que antes estavam parados ao meu lado agora haviam sumido… não sei bem em que momento sumiram, mas não estavam mais lá.

— Sumiram?

— Na verdade eles nunca existiram… pelo menos não fora de você… pelo menos nunca como opositores externos.

— E como eles…

— Eram seus medos filho… seus traumas, inclinações particulares, desejos inconscientes… todos entrando em conflito com suas decisões e vontades conscientes, ou seja: entrando em conflito com você! Voce tentou fujir disso não tentou?

— Tentei… tentei atravessar a rua mas não tive sucesso nisso.

— É claro que tentou, não seria normal se não tivesse tentado, mas não é possível, essa é a mais antiga das ilusões: fujir de si mesmo! Mas me diga: e aquele rapaz, o que você acha dele?

Mais uma vez eu mirava os olhos daquela senhora, atônito por tudo o que vira e escutara, quando ela apontou para o homem que caminhava a minha frente, aquele de valentia e obstinação admiráveis. Virei o rosto e vi que ele estava lá, ainda de costas como o tinha visto da primeira vez, permanecia igual… não tinha sumido como os outros.

— Quem é ele? Diga, também quero saber!

— Você não imagina?

— Não sei.

— Sabe sim! Diga Abraão… Quem é aquele rapaz valente e aguerrido que está a sua frente?

Agora era ela quem me olhava como se pedisse alguma coisa num olhar levemente mais ancioso do que antes, como se algo muito importante dependesse da afirmação que eu estava prestes a fazer.

— Sou eu…

— Será você! Será você ´´Ábraão“…

— serei quando?

— Quando você decidir ser querido, espero que você decida o mais rápido possível… de preferência quando você acordar desse sonho!

— Acordar?

— Sim… ou você pensou mesmo que tudo isso era real?

— E quando eu vou acordar?

— Quando você vir o que eu tenho para te mostrar. Você está preparado?

— Mostre!

Ela me olhou pela última vez, uma lágrima tímida escorria de um de seus olhos. O rosto dela voltou-se para a maca, o meu acompanhou, pela sugestão da sua expressão, o movimento de sua face. Sua mão puxou o manto e eu vi quem estava abaixo daquele pano de mistérios: eu… era eu quem estava na maca… sempre foram sobre mim todas as coisas e todos os personagens. Sempre fui eu cada um deles, até a tal mulher onisciente que me explicava todas as coisas era mais uma entre as tantas facetas da conciência me alertando durante o sono sobre os percauços do caminho. Era eu quem estava naquela maca! Era minha figura dos pés a cabeça e eu não estava morto como tinha pensado, pois respirava saudavelmente, mas havia uma estranha deformação naquela enésima cópia de mim mesmo: nela eu era cego! Os olhos moviam-se vivos por baixo das pálpebras, mas estas estavam coladas ao contorno dos olhos, como se as pálpebras tivessem sido costuradas a força.

Ao ver tudo isso senti o chão desabando sob os meus pés, me vi caindo no abismo dos sonhos perdidos e sendo amparado pela realidade fria e pálida da cama. Acordei de um pesadelo bizarro, com personagens etéreos e fantasmagóricos mas não afirmo, só por causa disso, que meus problemas tenham diminuído.