Mulher Invisível
 
  Sempre quis ser invisível. Em outros tempos, tinha um sonho. Uma visão. Saia andando sem rumo, sempre para frente, nunca parando. Apenas ia, não sabia para onde, nem para que. Só sabia que ao imaginar a caminhada se sentia livre. Sem amarras, sem dores, sem necessidades físicas. Não pensava nas impossibilidades. Pensava apenas na liberdade.Como se tivesse asas impulsionando os seus passos, seguiria sempre para a frente, invisível.

  Hoje o sonho tem limites. Quando sai andando sabe para onde vai, mas sem garantias de que vai chegar e de como voltar. Porque hoje a liberdade vai até ali e ela quer ir e quer voltar. Mas nem mesmo tem certeza de que vai controlar seus passos. Sente-se com asas de galinha. Um vôo até o poleiro e nada mais. Mesmo que seja até o pau mais alto do galinheiro.
 
 
Já saiu de casa cansada, cansara-se só de imaginar o percurso, talvez pelo calor que se mostrava inclemente. O sol avisava que logo, logo, atingiria a sua temperatura máxima. Era assim nas manhãs de sábado, quando todas as pessoas da cidade saiam para as ruas. Pois era isso o que parecia. Pessoas e carros não queriam ficar em casa nas manhãs de sábado e bem cedo todos já estavam a postos para ajudar o sol em seu trabalho de aquecer as ruas.
Na mão esquerda levava a bengala, no ombro direito carregava a bolsa e assim foi, subindo a rua, atravessando esquinas. Andava devagar como andam todas as pessoas não acostumadas a serem guiadas por uma bengala: passo a passo.
Custou a perceber que havia alguma coisa diferente naquela manhã, talvez porque os buracos na calçada lhe exigissem atenção redobrada. Mas no mais, tudo parecia igual. As pessoas cruzando por ela ou quase a atropelando com suas sacolas pesadas de compras. As lojas cheias. As vitrines abarrotadas de coisas que em outras épocas lhe pareceriam até bonitas. Sapatos. Roupas. Presentes. Livros. E ela ia andando e sorrindo. Foi aí que percebeu a diferença. Não havia retorno para seus sorrisos. Começou a sentir-se boba já que estava rindo sozinha, para o nada. Nenhum contato visual. Nenhum riso, alegre ou triste, sendo devolvido. Era como se ela caminhasse sozinha pelas ruas estranhas de uma cidade estranha. 
A amiga de tantos anos passou por ela e não disse nada: nem um ei, como vai?. Desceu a rua continuando seus passos sem nenhuma interrupção. E ela continuava subindo, rumo ao seu destino planejado. Preciso voltar, a mulher pensou, mas não conseguia parar de andar. E assim seguia, toc,toc, a bengala batendo de mansinho nas pedras da calçada. E ninguém ouvia. 
Costumava andar pelas ruas e pensar na alegria que era viver naquela cidade. Nunca conseguia chegar na hora marcada em destino nenhum se não planejasse o tempo para as interrupções. Havia sempre alguém querendo conversar e ás vezes era ela quem tinha de recusar o contato visual e abreviar o sorriso. Reclamava, mas sabia que era da boca para fora. Reclamava, talvez pelo hábito, necessidade de justificativa, mas essas paradas interruptórias lhe faziam bem- faziam-na se sentir viva, parte de um todo. 
Em uma das esquinas, encontrou uma sombra e seguiu a sombra. E foi seguindo a sombra que começou a descer. Não estava mais em busca de um destino, sem perceber se dera conta que o tinha ultrapassado. Olhou para a mão direita, levada pelo chamado do peso e percebeu que estava carregando sacolas. Então parara em algum lugar do qual não se lembrava e fizera compras. Alguém a atendera e conversara com ela, talvez até tivesse rido. Ou será que ela, aproveitando-se da invisibilidade, tinha se apossado das mercadorias e saído livre, leve e solta?  O cheiro de goiabas maduras alcançou suas narinas, vindo de uma das sacolas. Não sabia o que tinha nas outras, só sabia que estavam pesadas e percebeu o quanto seria difícil continuar. Por um momento pousou as sacolas no chão tentando readquirir o controle de si mesma. Recuperando parcialmente o fôlego, reiniciou a caminhada em busca de si mesma, em busca da visibilidade. Sentia-se arrastando pelo caminho, levada pela gravidade – tudo o que sobe um dia tem que descer, pensou. E ela tinha subido e agora contava com a ajuda dos santos – porque para descer todos ajudam. E assim as esquinas foram se multiplicando e ela caminhando. Mais uma, pensava. Mais uma. Quando avistou, ainda bem de longe, o galho onde poderia pousar com segurança, em pensamento, voou.  E quando bateu com os pés na segurança de seu poleiro decidiu tranquilamente que nunca mais haveria de sonhar em ser invisível.