BUNKER
Enquanto continuamos combatendo, homens a postos ao menor sinal, os inimigos me são cada vez mais distantes. Imaginamos inimigos a cada ruído à noite.
Há meses estamos em alerta aguardando a artilharia inimiga. Ela não vem e a ansiedade tem causado em toda a tropa desejos de acabar com tudo, com a espera, com o sufoco. Soltar o pino de uma granada. Pelo menos tudo estaria acabado, não precisaríamos mais conviver com os odores uns dos outros, com os temores revelados quando o choro é alto demais para ser abafado pelos travesseiros. Tudo explodirá. Se continuarmos sufocando.
Durante o dia o calor é insuportável, os odores azedos, a permanência questionada a cada impulso de sair. À noite, perdemos a confiança. Juntos estamos protegidos até o momento em que nos descobrirem, nosso espaço aéreo estiver desprotegido e um míssil nos reduzir a cinzas.
É o que tem restado de nossas vidas. Sofremos a aproximação, amaldiçoamos a nossa condição e à noite reafirmamos as convicções que nos trouxeram até aqui, ressuscitamos nossos deuses e a eles nos apegamos para preservar a sanidade. No impossível, improvável, temos alicerce.
Nas lembranças de infância, nas batalhas com soldados de plástico, encontramos a fonte que inspira os homens a crescer e dominar.
Sempre surge a dúvida quanto à dominação. Sentimos — juntos, a postos — a segurança de ter tudo nas mãos. Um bando. Meninos não vivem sozinhos. As armas, as munições em nossas mãos. No entanto, apesar de sufocarmos esses pensamentos, tudo se esvai. Como areia entre os dedos, sujeitos à intempérie. Uma recordação do mar escrita em páginas que nunca chegarão ao seu destino.
Um dilúvio. Saudades dos conhecidos, dos amigos que supostamente foram abatidos. Um constante observar as transformações nos rostos uns dos outros.
Carrego um crucifixo.
Apego-me a Jesús. Mais um latino-americano. Nesta nossa guerra todos os países lutando em conjunto, ao sul, temerosos, sem prática. Assim como eu, Jesús divide a mesma fé. Argentino, custei a usar a letra R ao chamá-lo pelo nome: Resús. Seu país já ocupado. A Argentina submersa no caos, assim como Bolívia, Brasil e Venezuela. Resta-nos as cordilheiras peruanas, de difícil acesso, um lugar seguro para lutar.
Jesús é o nosso comandante, residiu neste país, conhece todo o terreno, sabe o que faz. Tenho nele o líder que jamais serei. Por que tudo, em breve, estará espalhado, jogados no céu com a explosão de um míssil. Me aproximo dele. Parece compreender tudo, talvez tenha possuído uma tropa inteira, centenas de soldados de plástico, insensível com a perda de um, mas consciente das estratégias que deve tomar, das posições que cada um deve ter.
Jesús tem a barba espessa após todos esses meses de descuido. Esquecimento. Messiânico quando nos promete a vitória, mas se esquece de nós nestas noites tempestuosas, encontra refúgio no silêncio. Foge sob uma chuva que, repentinamente, pode ser de fogo, e nos dizima aos poucos a cada dia.
Na primeira ocasião em que Jesús saiu correndo, a tropa quis imitá-lo, mas não sabíamos se os trovões tinham cheiro de pólvora, se não vinham de um tanque. Ficamos a postos, aguardando que Jesús retornasse para nos dar um caminho, para dizer que estava tudo bem, que podíamos descansar. Ele voltava apenas na manhã seguinte.
Nas manhãs não nos preocupamos, confiamos na visão, na luminosidade que nos faz mais vulneráveis e ao mesmo tempo cientes de que tudo pode acabar. De repente, tudo pode acabar, mas estaremos vendo a aproximação do inimigo.
A morte se aproxima e depositamos toda a confiança em Jesús, em seu pulso firme, nossas crenças, a proximidade. Uma paternidade indesejada, incumbida por patentes; e nós: meninos.
Ele está perto, nos toca com mãos fortes, com a masculinidade maior que a nossa porque ele tem uma tropa. Ele é o comandante. Os soldados dos outros países não confiam nele tanto quanto eu, eles riem do meu apego, compreendem sua língua, seus erres.
Mas depois de hoje não teremos mais que lutar. Hoje a noite é mais tempestuosa que as anteriores. Mais um monumento foi derrubado. A cidade de Lima não existe mais, é uma montanha de escombros a se somarem as de Buenos Aires, São Paulo e Caracas. Jesús seguirá seu caminho e ficaremos aqui aguardando o estouro, o retumbar da artilharia inimiga, talvez o som de cavalos, das lanças dos soldados, de suas espadas prontas para nos tirar da clausura do bunker, nos aliviar de pensamentos que nos impedem de lutar. Soldados de plásticos soterrados na lama.
Estamos cansados após tantos meses. Sabemos do cansaço, das vontades sufocadas, da confiança morta e revivida a cada ir e voltar do comandante.
Jesús não voltará depois desta noite, sabemos.
É triste saber. Tudo muito próximo, iminente, sem possibilidades de parar de jogar. Deixa de se esgueirar pelo chão e encontrará um céu turbulento sobre sua cabeça, com luzes indecifráveis, coloridas, com sons ensurdecedores, com visões baças, com a proximidade do inimigo.
A granada seria solução. Livraria minha cabeça covarde desses pensamentos sem necessitar das mãos inimigas para me degolar.
Quero puxar o pino, explodir com tudo! Tomar decisões. Subir a patente. Ser indulgente comigo mesmo. Indisciplinado. Insubordinado. Quero gritar como todos os outros. De medo. Não mais sufocar, não sentir na garganta as mãos inimigas me permitindo ou não viver.
Por que santificamos nossa guerra.
Explodi, mas Jesús tenta segurar minhas mãos. Já é tarde, contudo. Já faz tempo que nem me emociono. De que adianta esse olhar nos olhos se o estopim ocorreu? Já é tarde, escuro demais. A munição acaba. Tudo voa pelos ares. Sem mãos para segurar antes da queda. Estilhaços.