CADELA
Após algumas horas com as pernas suspensas, eu já poderia fazer o teste.
Os pés estavam no ponto que eu queria. Depois de algumas horas com sono esperando, meus pés estavam dormentes.
Como se não me pertencessem, cortaria os pés com uma faca. Para saber se sentiria dor, para saber se a dor não é apenas uma questão de dormência.
Dormindo talvez fosse a melhor maneira de morrer. Por que estava decidida de que morreria. Com uma faca nos pés faria o teste da dor.
Se doesse seria mais difícil. Sangrando feito um animal aos prantos, seria mais embaraçoso. Todos saberiam que eu morria antes de concretizado. Haveria uma chance de salvação, de intromissão.
Se dormisse, se comprovasse que dormindo não sentiria dor alguma, seria mais rápido. Bastava se deitar, fechar os olhos, pousar as mãos sobre o peito para facilitar a vida de quem me preparasse para o enterro, para os agentes funerários, me deixar levar por muitas mãos. Por homens fortes que estariam dispostos a carregar, que limpariam o vômito da minha morte, eu morreria.
Um veneno ingerido e o sono duraria uma eternidade. Em pouco tempo o corpo reagiria.
Se houvessem convulsões também seria embaraçoso. O trabalho seria redobrado. Teriam de limpar com mais cuidado, percorrendo meu corpo com água e sabão.
Os homens se aproximariam do corpo durante meu sono de morta. Fingindo limpar, eles passariam a mão por toda a superfície do corpo. Gelado, rígido, para saber se é melhor, penetrando os dedos em algo que não reclama, algo menos arredio, mais compassivo. Para os homens é mais fácil. E eles são mais fortes, me carregam da mesa para o caixão, da cama para a terra. Rolando sobre o meu corpo vazio.
É muito bom! Mas vem essa cadela me tirar o pensamento, tirar a coragem com a faca já em mãos.
Maldita cadela que subia no colo de Roberto assim que ele se sentava no sofá. Assim que ele passava pela porta, lá ia ela com o rabinho abanando. Se oferecendo antes mesmo de ele abrir a porta do carro, sentindo que ele chegava. Sentindo seu perfume, no seu colo. A cadela sentia o cheiro de seu esperma e, na certa, queria lamber-lhe o pau.
Meus pés começam a acordar. Minha tentativa falhando porque imaginei demais.
Maldita cadela que ele acariciava com vontade, submissa, que poderia suportar sem morder. Se ele ao menos fosse capaz de agredir um animal.
Veterinários!
Eu posso ficar machucada, com o coração nas mãos, com a faca pronta para cortar os pés porque o pulso exige mais coragem. Ele não me acaricia, não compreende que preciso de afago.
Não sei porque me surpreendo. Se a vida é cheia de cadelas, eu não deveria me importar. Eu também poderia ser uma, passando de mão em mão, experimentando, acumulando nomes em uma agenda com descrições quanto ao tamanho, a idade, os pontos fracos, a habilidade em me fazer cadela. Eu poderia.
No entanto, ao invés de fazer, eu quero morrer. De amor mesmo! Desesperada. Escrevendo há semanas uma carta suicida que é pra não dizerem que não avisei, que não tive sintomas. Estava ali na escrivaninha para quem quisesse ler, para quem tivesse curiosidade de se meter na minha vida e impedir que eu me envenene e durma.
Estou esperando que alguém venha me dizer que eu sou muito jovem, que posso ter uma vida tão promissora, tão longa.
Mas por que prorrogar? Seria mais simples passar um batom vermelho/puta e sair feito uma cadela, procurando Roberto em cada homem. Sentir o cheiro exalando das suas cuecas, chegar bem perto para sentir.
Uma noitada com amigas para provar que sou mais bonita e me vesti melhor, que os olhares são para mim. Eles dizendo que sou fácil, como uma cadela, afastando o pensamento, desviando o olhar. Todos eles me olhando para inveja das minhas amigas, para que elas se distanciem ainda mais, para que eu me sinta um pouco mais sozinha e neurótica nesta cidade.
Vivendo com uma cadela que rouba a atenção de Roberto, não posso continuar. Por isso quero morrer.
Com doses de veneno de rato. E as convulsões seriam constrangedoras. De amor exagerado e dor-de-cotovelo.
Tudo por causa das cadelas.
Ela que dorme aos pés da minha cama, que se habituou a ser bem tratada e receber afagos. Sonha em tomar meu lugar nas mãos de Roberto.
Roberto que nem se importa com a carta que escrevi, com todas as ligações que não atendeu, que desliguei depois de ouvir sua voz.
Paranóica mesmo! Por isso quero morrer sangrando, testando minha dor. Submissa como uma cadela morta dormindo aos pés de Roberto. Recebendo ordens para me fingir de morta. Adestrada aos pés.
Minhas pernas despertam totalmente, já me permitem correr atrás de Roberto minutos antes de ele embarcar para longe, para nunca mais voltar. Em pé, alcanço a faca na cozinha, me movimento pela casa procurando uma maneira mais eficaz de morrer.
Um secador de cabelos caído propositalmente caído na banheira... Mas não tenho uma banheira, nem sei se tenho luz! Tantas contas não pagas; tanto tempo desempregada. Não sei se a faca está afiada, se a ferrugem não consumiu o corte. Morrer de tétano, enferrujada.
Tudo se deve ao signo, à sorte de hoje.
Se eu não fosse canceriana, tão simplória no meu jeito de ser, poderia me tornar uma cadela. Dançar a noite toda para me esquecer dos homens, sob olhares das minhas amigas com inveja questionando meu vestido. Esquecendo Roberto desejada por Miguéis, Gustavos, Fernandos.
E tudo a um passo, na cozinha. Sobre a mesa. Aos pés da cama esperando que eu decida logo para que possa lamber o que restar de mim. A cadela que espera fingindo, dormindo.
Juntas as circunstâncias, as oportunidades, sobre a cama, me resta pegar a faca e cortar o pescoço da cadela. Já que meus pés dormiram, já que quero saber o quanto sangra e posso ser uma cadela, experimento nela. Alvo animal que finge dormir.
Cadela que sempre soube quando ele chegava, seu carro estacionando na rua. Alvoroçada com o cheiro que dele exalava quando nos amávamos. Ela o sente na porta antes mesmo de tocar a campainha.
Esperta cadela que finge dormir e se levanta no momento em que a coragem e as circunstâncias estão todas presentes. Com a faca na mão, ela corre para a porta abanando rabo, dizendo que ele chegou, desesperada para se deitar no seu colo.
Mas não desta vez! Não quero saber de mais afagos, competição.
Posso ter uma chance pequena, mas mesmo assim arremesso a faca.
Uma pena que Roberto não tem sorte e a cadela tem reflexos, instintos, sai da mira. Se ele tivesse um pouco mais de sorte, estaria com as malas junto ao corpo protegendo-o do golpe de faca, se esquivaria da minha neurose quando nos conhecemos, quando eu tentei o suicídio na primeira discussão. Roberto não sabe o que é morrer de amor sujando o tapete. Cinematograficamente com as mãos no ferimento pedindo ajuda.
Ainda há tempo de salvação, de pedidos de desculpas, de juras de amor. E, no entanto, quero tanto saber como é ter o vermelho nos lábios, como é sentir tanta dor, compartilhar uma vida, ter lida minha carta na escrivaninha, que não vejo mais graça em prolongar.
Ainda que doendo,sentindo tanto a morte de Roberto, caminho até a cozinha. Existem mais cortes em minha vida, outras feridas que não cicatrizaram, fraturas expostas. Pego a faca e fazemos um pacto, um acordo de núpcias, um casamento, com direito a rosas vermelhas no peito e uma cadela fazendo a assepsia lambendo meus olhos, minha dama de honra.