Três horas e meia entre o despertar e o desertar
Guilherme acordou bem naquele sábado. Sente fome, mas continua deitado. Saber que não precisaria levantar cedo era mais que uma alegria. Guilherme estava em paz. Nada de trabalho, nem faculdade, nem mãe, irmã ou cobrador para fazer seus ouvidos arderem.
Aponta o controle para a TV, mas não consegue ligar. Levanta um pouco a cabeça, força as vistas e vê que a luzinha vermelha do aparelho não está acesa. Aperta o interruptor próximo à cabeceira da cama e nada de luz. "Acabou a força. Muito bom" - sussurrou, preguiçoso, virando-se para o lado. Fica naquela posição por mais alguns minutos.
Levanta, se estica, alonga as pernas, os braços, o pescoço e estranha o silêncio total. No sábado de manhã a avenida onde fica sua casa é bastante movimentada. Ele não escuta o barulho dos carros, nem a converseira habitual da padaria em frente. Percebe também a ausência do canto dos pássaros.
Ele se dirige à sala, abre a porta que dá para a rua e fica paralisado. Os muros da casa não estão lá. Nem o portão. O cachorro também desapareceu. O cenário que o rapaz vê é formado por chão de terra e bastante neblina. Nada mais. Guilherme anda ao redor da casa. Não há absolutamente nada: nem árvores, nem placas, tampouco casas. Respira fundo, solta o ar. A neblina branca é morna e inodora.
Ao olhar para cima, nota uma bola azul, de tom pouco menos claro que o céu, do tamanho do sol. E só então se dá conta de que a bola está no lugar do sol. O astro não está lá, mas o dia está claro. "Mas o que é isso? O que está acontecendo?" - gritava o pensamento. A bola, para ele, parece ser feita de plástico. Ou de vinil. "Não. A bola não brilha. Mais provável que seja feita de gesso ou borracha" - reflete. Ele não se importa em dizer. Falava sozinho, sem ter que se preocupar em ser discreto para não ser notado. Entretanto, falava em voz baixa. "A bola azul no céu é de borracha". Depois de uma pequena pausa, olha para os lados, para trás e diz mais alto. "A bola azul no céu é de borracha". Andava e procurava por qualquer sinal de vida nas redondezas e não via mais que aquele imenso vazio. "A bola azul no céu é de borracha!" - grita o rapaz. "Você tá me ouvindo?". "Hein?". A cada frase o grito fica mais alto. Ele põe as mãos para cima e pula. "Ei!". Lembra-se do grito do roqueiro no show e grita ainda mais. Som prolongado. "Ei! Onde estou?". Começa a correr. "Me tira daqui!". Diz mais três vezes. "Que merda é essa?". Terra, neblina. Som nenhum além dos dele mesmo. Os sons dele gritando, correndo, respirando. Como se estivesse preso em uma câmara fechada a vácuo. Ninguém escutava Guilherme. E Guilherme não escutava ninguém além dele próprio.
Ele volta para casa. Observa com atenção se havia alguma coisa diferente. Não nota nada de errado. Na parede, nem um risco. Tudo igual. Os móveis, os livros, os CDs, os vasos de plantas, nada alterado. Na cozinha, abre a torneira. Não vê água. Tenta a torneira da pia do banheiro e a do chuveiro. Vai até a despensa, abre a porta e observa. Tem água e alimento suficientes para uns cinco dias.
Pega um livro e senta-se à mesa da cozinha, que é a parte mais iluminada durante o dia. "Fortaleza Digital", de Dan Brown. Guilherme é um fã do escritor. Ele abre na página 45 e tenta ler, mas não pode. Tem dificuldade até para fixar os olhos nas letras. Trêmulo, fecha o livro e busca o baralho. Distribui as cartas para jogar paciência. Vira a primeira carta, mas não consegue dar continuidade ao jogo. Levanta-se, traz um pacote de biscoito recheado sabor morango, jarra de água e a Playboy do mês. Leva um biscoito à boca, mastigando lentamente. Passa as páginas e para ao chegar às fotos da segunda modelo. "O telefone!" - grita, pulando da cadeira, largando a revista de qualquer jeito, que cai no chão. Ele tira o fone do gancho e escuta um zumbido agudo, como a nota mais alta do grito de dor de um cachorro, que não para. Ele não consegue sequer aproximar o fone do ouvido.
Volta para a mesa. Come mais duas biscoitos. Despeja da jarra no copo e bebe. Canta baixinho. "... os abraços hão de ser milhões de abraços. Apertado assim, colado assim, calado assim. Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim. Que é pra acabar com esse negócio de viver longe de mim...".
Ele vai lá fora novamente para ver se a neblina tinha cessado. Queria poder enxergar algo mais. A neblina continuava densa no ar, mas ele notou que a bola azul estava cinco vezes maior. E mais escura. Agora se aproximava ao tom do azul da bandeira.
De volta à mesa, come mais biscoitos. Traz um pacote de torrones e uma caixa de leite semi-desnatado. Come, lê, joga, escreve, desenha. E se cansa. O sono está de volta.
Guilherme se dirige ao quarto. Deita na cama. Reza um Pai-Nosso e dorme. Acorda e chama: "mãe!". Senta-se à cama. Olha para a TV: nada de força ainda. Lá fora, nenhum som.
Ele se levanta e vai novamente para fora da casa. Nada mudou. Espreguiça-se. Olha para a imensidão. Observa aquele espesso infinito. Tristeza. Desolação.Guilherme tenta se lembrar dos filmes que viu, jogos que jogou, livros que leu, cuja situação era semelhante. Ele procurava agir da mesma forma que os personagens destas histórias.
Decide ir mais longe. O carro não está disponível. Desapareceu com os muros, o cachorro e a garagem. Pega a bicicleta na copa e vai pedalar. Ele procura ir em linha reta, para não perder o rumo da casa. Vai bem mais longe, mas ainda assim não consegue ver nada diferente. Cansado de pedalar, senta-se no chão de terra. Guilherme chora. "Meu deus... o que é isso? O que é isso? O que acontece?".
Ele se levanta, olha para os lados e avista alguém deitado há cerca de oitocentos metros à frente. Apesar do cansaço, Guilherme corre até lá. Ao chegar, descobre um corpo decapitado. Está vestido com roupas idênticas à dele: calça jeans e tênis preto All-Star. A camiseta vermelha era menos escura e mais brilhante que a poça de sangue que ficou no lugar da cabeça. Cicatriz de queimadura no pulso direito. Era o corpo dele. O rapaz foge. Volta chorando para onde tinha deixado a bicicleta. Pedala para casa. Antes de entrar, ele nota que a bola ficou gigante, cobrindo quase todo o céu. Contudo, a cor azul pouco se alterou. Depois de mais algum tempo, a bola tocaria o telhado da casa de Guilherme. Ele não tinha outras idéias.
O rapaz entra na casa. Bebe mais um copo de água e guarda o baralho na caixa. Recolhe do chão a revista Playboy e guarda-a na repartição inferior direita da estante da sala. Em seguida, vai para a cama e fecha os olhos. "...a escada do seu velho sonho, que vai dar sempre onde começou. É a chave do maior poder, que não vale um chiclete que alguém mascou". Guilherme canta, agora em voz alta, mais alta que pode. Ele sente o azul da bola invadir o ar. Enxerga a si próprio, de longe, se afogando num mar de tinta azul. A cena embaça, escurece. A cor azul-marinho invade o ar, impedindo qualquer outra visão.